Ana Lua.

Tudo mudou quando aquela porta se fechou.

Eu acordei com o som das malas sendo arrastadas. O sol ainda mal tinha tocado o telhado e o peso no meu peito já me avisava: era o fim de uma era. Vesti meu moletom velho e fui até a sala. Meus pais estavam prontos para ir. Minha mãe, com os olhos úmidos e o rosto cansado, me deu um beijo na testa. Meu pai passou os braços ao meu redor, mas estava inquieto como sempre.

— Não faz assim, Ana Lua... Vai ser só um tempo. A gente vai ajeitar tudo lá no México, e depois mandamos chamar você, — minha mãe disse, apertando minhas mãos.

— Me levem com vocês, por favor... Eu não quero ficar! — supliquei, sentindo meu coração se partir enquanto os olhos ardiam.

— Você precisa entender... Lá não é seguro ainda. O lugar onde vamos ficar é pequeno, instável... — meu pai tentava justificar, mas eu só conseguia ouvir a palavra que me destruía por dentro: não.

Ao lado da porta, estava Raul, meu irmão mais velho. Casado. Vinte e oito anos. Sempre distante, sempre frio, mas nunca agressivo. Ou assim eu pensava.

— Vamos, pai, mãe... Deixem logo essa frescura. Ela não é criança, — ele resmungou com desdém.

Meu pai assentiu com pesar. Um último beijo, um último olhar, e a porta se fechou.

Foi quando tudo desabou.

Eu me virei para Raul com os olhos cheios de lágrimas, tentando ao menos um gesto de carinho, um amparo qualquer.

— A gente vai ficar bem, né? — perguntei, me aproximando para abraçá-lo.

Mas ele me empurrou com força. Com frieza. Me jogou contra a parede como se eu fosse uma desconhecida e não sua irmã mais nova, sua única irmã.

— Se você acha que isso aqui vai ser um conto de fadas, acorda, garota. — rosnou, aproximando o rosto do meu. — A partir de agora, você vai cuidar da casa, da comida, da roupa e do que mais eu mandar. Senão, eu te jogo na rua. E com gosto.

— O... o quê? — mal consegui falar, sentindo o medo escorrer pela minha espinha.

— É isso mesmo. E não me encara com essa cara de órfã abandonada. Eu tô pouco me lixando. Tá entendendo, Ana Lua? Agora você é o peso que sobrou. E eu odeio peso morto, então sua encostada, ajude Camila e faça tudo que eu mandar.

Naquele momento, o chão pareceu sumir dos meus pés.

Meu irmão nunca foi amoroso. Mas aquele tom... aquela crueldade... era como se ele tivesse escondido um monstro por todos esses anos.

E ali, aos 17, eu entendi: eu estava sozinha. E sobreviver seria mais difícil do que eu imaginava.

Mas eu também entendi outra coisa: eu não ia desistir.

Porque mesmo cercada de dor, eu ainda acreditava que minha história não terminaria assim.

Crescer não foi uma escolha. Foi uma sentença.

Depois daquela manhã em que meus pais partiram e Raul se revelou um estranho, eu fui obrigada a virar adulta do dia para a noite.

Não havia tempo para luto ou saudade, só havia sobrevivência. Raul se tornou uma sombra agressiva em cada canto da casa. Entre gritos, tapas e insultos, eu aprendi a andar em silêncio, a não ocupar espaço. Dormia pouco, comia menos ainda. Roupa suja, casa imunda, trabalho pesado — tudo era minha obrigação.

E ele gostava disso.

Gostava de me ver pequena.

Quando fiz dezoito anos, peguei meu único documento e fui buscar trabalho. Qualquer coisa.

Acabei aceitando o que apareceu: uma vaga em uma equipe de apoio para festas de luxo. Serviço pesado, longas horas, mas o pagamento valia o esforço. Recebia no final do evento e isso me permitia comprar sabonete, absorvente, pasta de dente, coisas básicas que Raul se recusava a me dar.

Passei a viver com uma sacola escondida dentro da minha mochila. Minhas coisas. Meu mundo.

A mulher que mais se aproximou de me ajudar foi Camila, a esposa de Raul. Uma mulher doce, mas tão destruída quanto eu. Ela passou anos aguentando o homem que ele se tornou. Um dia, não aguentou mais. Fez as malas e decidiu ir embora.

Eu me agarrei a ela no portão. Chorando.

— Me leva com você, Camila... Por favor... Eu não aguento mais. — implorei, enterrando o rosto em seu ombro.

Ela chorava também. Me abraçou forte. O último abraço verdadeiro que tive por muito tempo.

— Eu queria, Lua... Meu Deus, como eu queria... — ela sussurrou. — Mas ele não deixaria. E eu tenho medo. Muito medo.

— Mas e se ele me machucar de verdade? — minha voz tremia.

— Foge. Um dia, quando puder... foge sem olhar pra trás.

E então ela se foi. Me deixando com Raul e com o novo pesadelo que estava por vir.

Logo depois que Camila se foi, Matheo, meu namorado, apareceu na minha vida. Um sorriso bonito, palavras doces, cheiro de perigo.

No começo, ele parecia um alívio. Um pouco de luz naquela escuridão. Eu me apaixonei fácil. Talvez porque precisava desesperadamente que alguém me enxergasse.

Mas ele não era a salvação.Ele era só mais uma prisão, começou a me privar, me ameaçar, falar que eu ia servir meu corpo nas festas entre coisas piores.

Matheo e Raul viraram cúmplices. Amigos de cerveja, risadas e humilhações. E eu? Eu era o brinquedo entre os dois, e quando tentei terminar o inferno se instaurou:

— Vai ficar aqui uns dias. — falou Raul.

— O quê? Aqui? — questionei tensa.

— Relaxa, princesa. Mal vou ocupar espaço. — falou ele debochando.

— Raul, isso aqui é um abrigo, não um casamento... Eu não quero ele aqui. — falei.

— Você querer ou não querer, não interessa. A decisão é minha. Esse teto é meu.

— Ele me faz mal. Você sabe disso. Ele e você...

— Cuidado com o que vai dizer.

— Vai fazer drama agora, florzinha? Te falei que estamos ligados, para sempre. — falou Matheo.

— Eu não tô fazendo drama... Só quero um lugar onde eu me sinta segura...

— A decisão é minha. E ponto final. — ele fala e sem aviso dá uma bofetada em meu rosto, a dor irradia no corpo e a alma grita de vergonha.

— Viu só? Tá tudo resolvido. Vai ser divertido reviver os velhos tempos. — ele respondeu rindo da minha cara ajoelhado na minha frente.

Matheo começou a me gritar, a me empurrar, xingamentos cada dia pior. As mãos, tapas. A pior parte era que Raul assistia. Ria. Incentivava.

Quando me mudei para o quarto dos fundos da casa, para viver o mais longe possível dos dois, o inferno se tornou diário. Raul dizia que agora eu era responsabilidade de Matheo, como se eu fosse um saco de batatas e eu negava.

Eu passava os dias servindo festas chiques e as noites sendo esmagada por dois homens que me queriam pequena, fraca, silenciosa.

Mas eu não ia ficar ali para sempre.

Mesmo que tivesse que esperar.

Mesmo que tivesse que sangrar para isso.

Eu ia escapar.

E eles iam ver do que eu era feita.

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Comments

Rafaela Braga

Rafaela Braga

Engraçado né ele diz que a mulher pra conquistar o coração dele ter que sangrar e ela tá disposta a sangrar essa história vai ser fogo fogo gasolina e pecado

2025-07-02

2

Dulce Gama

Dulce Gama

meu Deus que situação esse irmão dela é um.montro junto com o Matteo Cruz credo 👍👍👍👍👍♥️♥️♥️♥️♥️🎁🎁🎁🎁🎁🌹🌹🌹🌹🌹🌟🌟🌟🌟🌟

2025-07-02

1

Marilia Carvalho Lima

Marilia Carvalho Lima

😔😔

2025-07-02

1

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