A árvore ficou pra trás.
Mas parecia que um pedaço de mim tinha ficado lá também.
Enquanto a gente descia as encostas das Montanhas de Névoa, senti o corpo mais leve e, ao mesmo tempo, mais pesado. Como se tivesse nascido de novo, mas carregando todas as vidas de antes. O mundo tava igual, mas meus olhos tavam diferentes.
Kael notou.
— Tá ouvindo?
Assenti. Era sutil, mas constante. Um sussurro no vento. Como se o próprio ar estivesse cantando. Ou talvez fosse minha alma, agora que a Canção tinha despertado.
— Isso vai ficar mais forte — ele falou. — Até o resto do mundo ouvir.
— E aí?
— E aí vão querer calar tua voz.
Passamos por uma ponte quebrada, com pedras cobertas de musgo. O cavalo de Kael resmungou, sentindo o cheiro no ar.
Tinha sangue.
— Tem alguma coisa errada — ele disse, puxando a espada.
— Você sempre anda armado?
— Sempre. Principalmente quando sei que tem alguém me observando.
— Observando?
Antes que ele respondesse, o barulho veio.
Galhos quebrando. Passos. E risos.
Risos frios.
De dentro da névoa, surgiram três figuras. Capas negras, olhos vermelhos. Vampiros. Mas não qualquer um. Eram soldados reais. Dava pra ver pelo emblema no peito — o símbolo do Trono Carmesim. Mas tinha algo errado neles… pareciam doentes. Ou enfeitiçados.
— Kael… — murmurei, instintivamente recuando.
— Fica atrás de mim.
— Mas...
— Não discute.
Os vampiros se espalharam, cercando a gente.
— Príncipe Kael — disse um deles, num tom quase zombeteiro. — Que honra.
— Vocês deviam estar protegendo a fronteira sul — ele respondeu, firme.
— Mudamos de rota. Recebemos ordens novas.
— De quem?
— Do príncipe Thorian. Ele quer a garota.
Meu sangue gelou.
— Ele sabe que ela despertou? — Kael rosnou, dando um passo à frente.
— Ele sentiu. O canto dela alcançou o palácio.
— Então ele tá mais perto do que eu pensei.
— Ele quer o trono — disse o outro soldado. — E sabe que pra ter, vai precisar do sangue dela.
— Ele não vai encostar nela.
— Isso não depende mais de você.
Um deles atacou.
Kael se moveu mais rápido que o pensamento. A espada dele brilhou prateada no ar, cortando o atacante no peito. Sangue escuro espirrou. Mas o vampiro não caiu. Riu. Os olhos arderam num vermelho vivo.
— Ele tá encantado — Kael murmurou. — Thorian usou magia demoníaca.
— Como você sabe?
— Porque eu sinto. E porque só um demônio ri quando sangra.
O combate começou.
Rápido, brutal. Os movimentos de Kael eram precisos. Dançava com a lâmina como se fosse extensão do corpo. Mas os inimigos não recuavam. Não pareciam sentir dor. Atacavam como se fossem bonecos controlados por algo maior.
Eu fiquei parada. Tremendo. Querendo ajudar. Mas não sabia como. Até que…
A Canção.
Ela começou dentro de mim. Fraca. Um tom só. Mas se espalhou. E quando abri a boca… eu cantei.
Não com palavras. Era mais como um som ancestral. Cru. Vivo.
Os vampiros pararam. Por um segundo. Um só. Mas foi o suficiente.
Kael aproveitou a brecha e cravou a espada no peito de um. O corpo se dissolveu no ar. Pó e sombra.
O segundo tentou fugir. Kael lançou uma adaga. Cravou no pescoço. Mais pó.
O terceiro... olhou pra mim. Só olhou.
— Você é real — ele disse, antes de explodir em fumaça.
O silêncio voltou, denso. A respiração pesada de Kael, o som do meu sangue ainda cantando.
— O que foi isso? — perguntei, ofegante.
— A Canção te protegeu.
— Eu não fiz nada.
— Fez sim. Cantou. O suficiente pra quebrar o encantamento. Pelo menos por um instante.
— Eu nem sei como.
— Não precisa saber. Ela sabe. Só canta quando precisa.
Olhei pros restos dos soldados. Cinzas. Não dava pra salvar ninguém.
— Eles não estavam vivos de verdade, né?
— Não mais. O Thorian os usou como marionetes.
— E por que ele quer tanto o trono?
— Porque ele é o mais forte entre nós. Mas não o mais digno. E ele sabe que sem a Amante de Lua, não pode tomar o trono sozinho.
— Então ele vai vir. Vai mandar mais.
— Vai. Até você não cantar mais nada.
Silêncio.
Ficamos ali por uns minutos. Recuperando o fôlego. Pensando.
— Quem é Thorian pra você? — perguntei, encarando Kael.
— Irmão. De sangue. De guerra. De dor.
— E agora?
— Agora ele é meu inimigo.
A frase pesou no ar. Como uma lâmina que caiu entre a gente.
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Mais tarde, já perto do anoitecer, encontramos abrigo numa antiga torre abandonada. As paredes de pedra estavam cobertas de trepadeiras secas, mas ainda firmes. Lá de cima dava pra ver boa parte do vale.
O céu tava limpo. A lua nascendo vermelha.
Kael acendeu uma pequena fogueira.
— Essa cor da lua… é normal?
— Não. É um aviso.
— De quê?
— De que alguém vai morrer.
— Legal.
Me encolhi num canto, puxando a capa pro corpo. Kael veio e se sentou perto.
— Você tá indo bem — ele disse.
— Eu matei alguém com uma música que nem sabia cantar.
— Você libertou alguém de uma prisão. Isso é diferente.
— Mesmo assim… é estranho. Eu me sinto... dividida. Parte de mim quer fugir. Parte quer lutar.
— E qual parte tá vencendo agora?
— A que quer entender.
Ele sorriu. Não muito. Só um canto de boca. Mas foi o suficiente pra me aquecer.
— A Canção vai te mostrar mais. Mas também vai te cobrar.
— Cobrar o quê?
— Escolhas. E sacrifícios.
Olhei pro céu.
A lua parecia sangrar.
E eu? Eu só conseguia pensar no que viria depois.
Se Thorian já tava atrás de mim…
Quantos outros viriam?
E até onde eu conseguiria correr… antes de ter que parar e cantar pra valer?
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Atualizado até capítulo 50
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