A neblina começou antes mesmo da gente chegar perto das montanhas.
Não era qualquer névoa. Era espessa, viva. Tinha cheiro. Um cheiro velho, de pedra molhada e flores que morreram faz séculos. Cobria o caminho como véu de viúva. Às vezes eu achava que via rostos nela. Sério. Rápidos demais pra focar, mas lá. Olhos. Sorrisos. Ecos de quem veio antes.
— As Montanhas de Névoa têm vontade própria — disse Kael, puxando o cavalo dele pra mais perto. — Elas escolhem quem entra. E o que mostram.
— E quem decide quem sai?
— Ninguém.
Arrepiei até a alma.
As árvores foram ficando mais tortas, mais retorcidas. Como se estivessem se curvando pra alguma coisa que a gente ainda não tinha visto. O ar ali era mais denso, como se o tempo tivesse parado. E talvez tivesse mesmo.
Eu tentava manter a cabeça firme, mas o lugar... ele falava. Não com voz. Com sensações. Lembranças que não eram minhas vinham à tona. Uma mulher de cabelos prateados, segurando uma foice. Um garoto de olhos dourados cantando no alto de uma torre. Um lobo de três olhos correndo sob a lua. Coisas desconexas. Mas intensas.
— Você tá ouvindo também? — perguntei, baixinho.
— Ouvindo o quê?
— As memórias dos mortos.
Kael não respondeu. Só apertou mais forte as rédeas. Isso já era resposta o suficiente.
Depois de horas cavalgando, a gente chegou a um platô. A neblina se abriu ali, como se alguém tivesse cortado o véu com uma lâmina invisível. No centro, uma árvore gigante, de tronco negro e folhas prateadas. Brilhava mesmo sem luz.
E na base da árvore, sentada como se esperasse a vida inteira por esse momento… uma mulher.
Não parecia velha. Mas também não parecia jovem. Era difícil saber. Os cabelos eram longos e vermelhos, caindo como sangue sobre os ombros. Os olhos eram de um cinza claro, quase branco. E quando ela olhou pra mim... foi como se eu tivesse sido vista pela primeira vez.
— Demoraram — ela disse, levantando devagar.
— Você sabia que a gente vinha? — perguntei, ainda de cima do cavalo.
— A Canção sussurrou. E eu ouvi.
Kael desceu primeiro. Depois me ajudou a descer. A mulher nos observava como se medisse nossa alma com o olhar.
— Você é a Guardiã? — perguntei.
— Eu sou o que sobrou dela — respondeu, com uma voz tão serena que doía. — Me chame de Lys.
Ficamos frente a frente. Ela me olhou por uns segundos eternos. Depois, encostou os dedos no meu braço, bem onde o demônio tinha me cortado. O contato queimou. Mas não de dor. Era como se o toque dela cavasse fundo e encontrasse algo antigo que tava dormindo em mim.
— Você foi tocada — ela murmurou. — E não morreu. Isso não é acaso. É escolha.
— Escolha de quem?
— Do sangue.
Kael chegou mais perto.
— A gente precisa saber se ela é mesmo...
— A Amante de Lua? — Lys cortou, erguendo uma sobrancelha fina. — A Lua não ama. Ela lembra. E quando lembra... reclama o que é dela.
Eu não sabia o que responder. Aquilo era grande demais. Sério demais. Mas meu peito já sabia o que a cabeça negava.
— Por que eu? — perguntei, quase num sussurro. — Eu sou só uma órfã...
— Você é descendente de um nome esquecido. O último verso de uma canção perdida. Uma chama antiga escondida no meio das cinzas.
Ela deu meia-volta e foi andando em direção à árvore. A gente seguiu. O tronco da árvore tinha marcas entalhadas. Símbolos. Círculos, luas, lágrimas. E no meio deles... um rosto. Um rosto esculpido na casca. Era o meu.
— Isso... isso é loucura — murmurei, recuando.
— Não é loucura. É destino. Essa árvore só revela o rosto de quem carrega a Voz Antiga.
— Que voz?
— Aquela que acorda quando a Lua sangra.
Kael me segurou pelo ombro. O toque dele me trouxe de volta. A realidade ainda era estranha, mas pelo menos não me engolia.
— Lys — ele disse, sério — ela corre perigo. O rei já sabe que ela tá viva. E os outros príncipes…
— Vão caçar. Como sempre fizeram. O trono está em disputa, e ela é o prêmio.
— Eu não sou prêmio de ninguém — falei, com o sangue fervendo. — E se alguém tentar me caçar, vai se queimar.
— Boa — Kael sussurrou, e eu quase vi um sorriso se formar no canto da boca dele.
Lys assentiu.
— Então você precisa se lembrar. Antes que te façam esquecer.
— Lembrar do quê?
— De quem você foi. E do que ainda vai ser.
Ela apontou pra uma abertura na árvore. Tinha uma escadaria descendo. Escura. Profunda.
— Lá embaixo há espelhos. Mas não são pra refletir o rosto. São pra mostrar a alma. Vai, Elara. Desce. Sozinha.
— E se eu não voltar?
— Então nunca esteve pronta.
Engoli seco. Olhei pra Kael. Ele não tentou me impedir. Só disse:
— Eu espero aqui.
— Promete?
— Prometo.
Respirei fundo e entrei.
A escada descia por um túnel cavado na madeira viva. Parecia que a árvore respirava. As paredes pulsavam. O ar era morno. Carregava cheiro de terra, sangue e tempo.
Quando cheguei ao fim, vi.
Havia um salão. Circular. Com espelhos gigantes encostados nas paredes. Mas eles não mostravam meu reflexo. Mostravam… memórias.
Num deles, vi uma menina de olhos prateados correndo num campo de flores negras. Era eu. Mas não nessa vida.
No outro, eu lutava com garras e presas, protegendo um grupo de crianças vampiras de uma criatura feita de sombra.
No terceiro, eu me beijava com Kael. No alto de uma torre em chamas. As mãos entrelaçadas, mesmo com o mundo desmoronando em volta.
— O que isso significa? — sussurrei.
E uma voz respondeu.
— Significa que a Lua já escolheu.
A sala tremeluziu. As imagens sumiram. E no lugar delas, apareceu a mulher do sonho. Asa de sombra. Olhos vendados. Ela estendeu a mão.
— Acorde, filha do Canto.
E eu acordei.
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Subi as escadas como se o corpo não fosse meu. Cada passo ecoava como batida de tambor.
Quando saí, Kael já me esperava. Olhou nos meus olhos e soube. Ele soube.
— Você viu?
— Vi.
— E agora?
Olhei pro céu. A Lua começava a surgir, fina como uma lâmina.
— Agora... a Canção vai começar a ser ouvida.
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Atualizado até capítulo 50
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