A floresta parecia respirar com a gente.
Cada passo era um estalo abafado entre galhos secos e folhas úmidas. A névoa ainda cobria o chão, mas agora tinha um cheiro diferente — não mais enxofre, mas sangue... o meu.
Kael andava calado. Ombros tensos, espada embainhada, mas os olhos atentos. Ele era o tipo de criatura que carrega silêncio como armadura. E eu? Eu era barulho puro, mesmo quando não dizia nada.
— Então... você vai me entregar pro rei? — perguntei, só pra quebrar o clima. — Tipo, “olha só, papai, achei uma órfã brilhante no mato”?
Ele deu um meio sorriso, daqueles que não chegam nos olhos.
— Não sou tão dedicado assim.
— E o que vai fazer comigo, então?
— Ainda não sei.
— Ótimo. Me sinto super segura.
Ele parou. Virou o rosto devagar, me olhando como se pudesse ver além da pele, do osso, da alma.
— Você devia estar morta, Elara.
— Eu quase estive.
— Não é isso. Aquela criatura... não era um demônio comum. Era um Incarh’zan. Um arauto da guerra. Só atacam quando estão perto de algo... importante.
— Tipo eu?
Ele não respondeu.
Seguimos em frente, e quanto mais andávamos, mais a floresta mudava. As árvores ficaram maiores, mais retorcidas, como se carregassem segredos antigos nos galhos. O chão virou pedra. O ar, mais frio. E então, no meio de tudo aquilo, surgiu um arco de pedra coberto de musgo, meio escondido atrás de um muro de cipós.
— Aqui — disse ele.
Passamos pelo arco, e eu perdi o fôlego.
Era um santuário.
Escondido, isolado, sagrado.
Uma casa de pedra escura com vitrais antigos, encostada numa queda d’água tão silenciosa que parecia mágica. Havia tochas azuis presas nas paredes e símbolos antigos talhados nos pilares. O som do mundo se calava ali dentro.
— Que lugar é esse?
— Um dos refúgios da realeza. Construído na época do Primeiro Sangue. Só os príncipes têm acesso.
— E você trouxe uma órfã pra cá. Não vai dar problema?
Ele me olhou de lado.
— Já tenho problemas demais. Um a mais ou a menos não muda nada.
Entramos.
O interior era simples, mas carregado de história. Estátuas de vampiros guerreiros alinhadas como sentinelas. Tapetes velhos, livros empilhados, armas de prata. E no canto, uma cama coberta por mantos de veludo escuro.
— Senta. Deixa eu ver seu braço — disse ele, apontando pra um banco de pedra.
Sentei. Tirei a parte rasgada da blusa devagar. O corte tava feio. Fundo, com bordas negras. O sangue já não escorria, mas parecia... pulsar.
Kael ajoelhou na minha frente e tocou a pele ao redor da ferida com a ponta dos dedos. Era frio. Mas... tinha algo a mais. Como se ele puxasse a dor pra ele. Senti a tensão escorrer das veias. Os músculos relaxaram.
— Você tem alguma ideia do que é isso? — sussurrei.
— Tenho suspeitas. Mas não gosto de palpites sem provas.
— Tenta. Vai que acerta.
Ele me olhou. Longo. Denso.
— Os antigos falavam de um tipo de sangue... misturado. Sangue da lua. De alguém tocado por forças que não pertencem só ao nosso mundo. Era raro. Perigoso. E valioso.
— Tá dizendo que sou... o quê? Um híbrido?
— Não. Híbridos são comuns. Você é outra coisa. Algo mais profundo. Quando o demônio te atacou, ele não só te feriu — ele reagiu a você. Recuou. Como se você tivesse queimado ele por dentro.
— Mas eu não fiz nada.
— Ainda não.
O silêncio voltou. Mas dessa vez... não era incômodo. Era denso. Quente. Como se algo tivesse sido plantado ali, entre nossas respirações.
— Você é sempre assim? — perguntei, só pra não mergulhar demais naquele olhar.
— Assim como?
— Misterioso, tenso, parecendo que carrega o peso do mundo nas costas.
— Eu carrego.
Tive que rir. Seco. Curto.
— Então talvez a gente tenha mais em comum do que parece.
Ele se levantou e começou a andar pelo santuário. Passava os dedos nos livros, nas paredes. Como se estivesse tentando lembrar alguma coisa que perdeu.
— A profecia diz que o Amante de Lua trará equilíbrio entre os mundos — disse ele, sem olhar pra mim. — Que carregará em si a chave do Coração Carmesim.
— Que porra é essa?
— Uma arma. Um poder ancestral. Selado há séculos. Só pode ser despertado por quem carrega o sangue certo. O rei acredita que quem encontrar o Amante de Lua herdará o trono... e salvará Sombraalma da invasão dos demônios.
— E você acha que eu sou essa pessoa?
— Não sei. Mas sei reconhecer quando algo... muda o curso das coisas.
Ele se virou.
— E desde que te salvei, tudo mudou.
A garganta apertou. Não era só o jeito que ele falava. Era o que ele não dizia. O que escondia atrás da armadura de silêncio.
E mesmo com o medo, a confusão, a dor... parte de mim queria acreditar nele. Mesmo sem provas. Mesmo sem lógica.
Talvez porque pela primeira vez na vida, alguém me olhava como se eu significasse algo.
Como se eu fosse mais do que uma órfã de rua com sorte ruim.
— Então o que vai fazer comigo agora? — perguntei, em voz baixa.
Kael cruzou os braços.
— Vou te esconder. Por enquanto.
— Esconder?
— Se o rei souber o que você é, vai te usar. Ou te matar. Depende do humor dele.
— E você? Vai me usar também?
Ele hesitou. Depois, disse:
— Eu não sou meu pai.
E naquele instante... eu acreditei.
Mesmo sem entender por quê.
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Atualizado até capítulo 50
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