Demorei pra dormir.
O corpo tava cansado, mas a cabeça… não desligava. Tinha coisa demais girando lá dentro. A dor no braço tinha virado uma pulsação quente, quase viva, como se meu próprio sangue tivesse aprendido a gritar. E o silêncio do santuário? Um silêncio pesado. Antigo. Como se o ar estivesse ouvindo tudo.
Fechei os olhos achando que ia só descansar. Mas caí.
Literalmente.
O sono me puxou como um abismo. Escuro, profundo. E aí começaram os sonhos.
Primeiro, veio o cheiro de sangue. Forte, doce demais, quase sufocante. Depois, a imagem de um templo esquecido, no meio de um deserto de cinzas. As colunas estavam quebradas, e uma névoa vermelha pairava no ar. No centro, uma estátua gigantesca. Uma mulher com asas de sombra e olhos vendados. Chorava sangue. Um sangue grosso, escuro, que escorria até o chão e formava um rio que queimava a terra.
Tentei correr, mas a areia me prendia. Cada passo me afundava mais.
— Você carrega o canto esquecido — sussurrou uma voz atrás de mim.
Feminina. Ancestral.
— Quem é você?
— Não sou quem importa. Mas você… você foi. E será.
Acordei num pulo. Suando frio, o coração disparado, a garganta seca.
Kael tava sentado numa cadeira perto da entrada. Dormia com a espada atravessada no colo, os cabelos caindo sobre o rosto. Mesmo meio torto, tinha uma beleza estranha. Uma coisa quebrada, antiga, como se ele tivesse visto mais do que devia e ainda assim tivesse voltado.
Levantei devagar. A ferida ainda doía, mas parecia diferente. Quase… viva. Como se algo estivesse se movendo dentro da pele.
Fui até a estante de livros no canto do santuário. Todos cobertos de poeira, muitos em línguas que eu nunca vi. Peguei um que me chamou a atenção. Capa de couro negro, uma lua cortada por uma espada gravada em relevo.
Abri com cuidado.
As palavras dançavam na página, como se estivessem fugindo do olhar. Mas algumas… algumas eu entendi.
> O Coração Carmesim não é uma arma.
É uma lembrança.
Daquilo que fomos antes da fome.
Virei a página.
E ali estava ela.
A mesma mulher do meu sonho. Asas escuras, olhos vendados, sangue escorrendo.
— Você teve o sonho — disse Kael, com a voz baixa atrás de mim.
Quase derrubei o livro.
— Como você sabe?
— Você murmurou dormindo. Em línguas antigas.
— Eu… não falei nada.
— Falou sim. E chamou por ela.
— Ela quem?
— A Mãe da Lua. Aquela que tece o destino dos amaldiçoados.
Fechei o livro. Devagar. Como se ele fosse explodir.
— Isso tá indo longe demais.
— Tá só começando — ele respondeu, se aproximando.
O jeito como ele me olhava… era diferente agora. Não era só curiosidade. Era como se ele visse alguma coisa dentro de mim que nem eu sabia que existia.
— Você reagiu ao meu toque, ontem — ele disse.
— Reagi?
— Seu sangue respondeu ao meu.
— E isso é ruim?
— É raro. Muito raro.
Kael ergueu a mão, devagar. Tocou meu ombro. E quando os dedos dele encostaram na minha pele… foi como um raio.
Uma onda de calor correu pelo meu corpo. Do braço pro peito, do peito pra garganta. Como um trovão por dentro. Como se meu sangue tivesse lembrado de alguma coisa que minha mente ainda não sabia.
— Você sentiu?
— Como se alguma coisa tivesse acordado — respondi, ofegante.
— Isso acontece quando duas linhagens se reconhecem — ele falou, sério.
— Que tipo de linhagens?
— As que vêm de antes da queda. Antes da fome.
Fiquei em silêncio, tentando juntar as peças. Mas era como montar um quebra-cabeça sem saber o que tem na imagem.
— Você acha que eu sou esse tal Amante de Lua?
— Eu não acho — ele respondeu, calmo. — Mas tô começando a acreditar.
— E por que eu? Por que justo uma órfã?
— Porque só alguém sem raízes consegue mudar o tronco da árvore.
Sentei de novo, com o livro no colo. As palavras dele ainda vibrando dentro de mim.
— O que acontece agora?
— A gente vai sair daqui.
— Sair? Pra onde?
— Tem alguém que pode ajudar. Uma das últimas Guardiãs da Canção. Vive nas Montanhas de Névoa.
— Você tá brincando.
— Não.
— Dizem que quem entra lá… ou sai louco, ou não sai nunca.
— Ou sai sabendo demais.
— E se for uma armadilha?
— Aí você vai ter que confiar em mim.
— E você confia em mim?
— Já tô confiando.
Ele me estendeu a mão. De novo. E, por alguma razão que nem o universo podia explicar… eu aceitei.
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Algumas horas depois, a gente tava cavalgando por trilhas escondidas. As árvores ao redor pareciam assistir a gente, em silêncio. O céu começava a clarear, mas a luz não chegava de verdade. Era um cinza pálido, sem sol, sem promessa.
As Montanhas de Névoa ainda estavam longe, mas dava pra sentir. O ar mudava. Ficava mais pesado. Mais espesso. Como se tivesse segredos demais flutuando nele.
A cada passo do cavalo, meu corpo parecia diferente. Como se tivesse se esticando por dentro. Meu sangue corria num ritmo estranho. Como se tivesse começado a cantar.
Kael cavalgava na frente, mas eu sabia que ele sentia também. A tensão. A conexão. O perigo. Tudo misturado.
— Quando a guerra começar — ele falou, sem olhar pra trás — você vai ter que escolher um lado.
— E se eu não quiser guerra?
— Ela vai querer você mesmo assim.
Fiquei quieta.
Porque, no fundo, eu já sabia.
A guerra já tinha começado.
Dentro de mim.
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Atualizado até capítulo 50
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