O céu da Maré estava encoberto, como se os deuses da favela sentissem o que estava por vir. O ar estava pesado, as rádios dos soldados estalavam com frequência e os becos estavam menos movimentados. Era aquele silêncio que gritava antes do estouro.
No campo de terra batida, Mirella e Gabrielle ainda se olhavam como se o mundo lá fora tivesse parado por uns segundos. Entre as mãos unidas e os olhos entrelaçados, uma tensão nova surgia — a de amar sem máscaras.
— Você quer mesmo isso? — Mirella perguntou, como se quisesse confirmar pra si mesma.
— Quero você. — Gabrielle respondeu sem hesitar. — E se tiver que colocar o morro todo de cabeça pra baixo, eu coloco.
Mirella soltou uma risada abafada, olhando pro céu.
— E pensar que eu passei anos tentando esquecer essa boca tua.
Gabrielle deu um passo à frente e puxou Mirella pela cintura.
— Então para de tentar.
O beijo que veio agora não era de raiva, nem de saudade. Era de entrega. Lento, profundo, sem pressa. Como se elas estivessem finalmente entendendo o que aquilo tudo significava. Os lábios se encaixaram como peças de um quebra-cabeça antigo. As mãos deslizaram com familiaridade, e os corpos, mesmo em silêncio, gritavam um pelo outro.
— Vem comigo. — Gabrielle sussurrou contra os lábios dela. — Dorme lá em casa hoje.
Mirella hesitou por dois segundos, depois assentiu.
— Tá, mas sem drama. Sem pergunta demais. E sem vigilância na porta do quarto.
— Prometo tentar. — Gabrielle disse, sorrindo de canto.
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Enquanto isso, na outra ponta da favela, Emilly estava deitada no sofá, o som da TV baixinho, uma garrafa de refrigerante no colo e o celular ignorado. Lara tinha ido embora mais cedo, e ela tinha aproveitado a solidão pra pensar. Pensar demais, como sempre.
O relógio marcava 03:07 da manhã quando a campainha tocou. Emilly travou por um segundo. Levantou devagar, pegou a pistola da gaveta da estante — só por precaução — e abriu a porta com o trinco preso.
Era Sara.
— Preciso falar com você. — disse a irmã de Gabrielle, com o olhar cansado e o capuz jogado pra trás.
— Não tem mais nada pra falar, Sara. — Emilly respondeu, firme.
— Por favor, Emilly… eu só… eu tava pensando em você. Tô mal.
— Você só lembra de mim quando se sente sozinha. Isso não é amor. Isso é carência. — Emilly destravou o trinco, mas não abriu a porta. — E eu cansei de ser tua válvula de escape.
— Você sabe que não é isso…
— Eu sei sim. Eu fui burra o suficiente pra aceitar por tempo demais. Mas agora? Agora chega. Você me quebrou em pedaços e nem olhou pra ver se eu tava respirando.
Sara engoliu seco, deu um passo pra trás.
— Emilly…
— Vai embora, Sara. E quando cê for dormir com outra, lembra que eu também aprendi a esquecer.
E com isso, fechou a porta na cara dela. Um choro engasgado escapou, mas ela segurou firme. Porque amor próprio também sangra, mas cicatriza melhor.
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Do outro lado da favela, Gabrielle e Mirella estavam no quarto dela, deitadas em silêncio, a luz azul da televisão piscando no fundo. Estavam vestidas, mas entrelaçadas — Mirella com a cabeça no peito de Gabrielle, ouvindo o coração bater calmo.
— Cê acha que isso vai dar certo? — Mirella perguntou, quase num sussurro.
— Eu não acho. Eu quero que dê certo. — Gabrielle respondeu, passando a mão no cabelo dela. — E tudo que eu quero, eu dou um jeito de fazer acontecer.
— Eu sou cheia de erro, Gabrielle. Tenho sangue nas mãos. E cicatriz demais.
— Então somos duas. — ela sorriu, sem medo. — Vamos errar juntas, mas com verdade.
Mirella fechou os olhos e, pela primeira vez em anos, se permitiu descansar sem vigiar.
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No dia seguinte, o rádio do morro estourou às sete da manhã.
> "Alerta! Movimento estranho na entrada da Vila do João. Três carros não identificados. Pode ser federal disfarçada."
Gabrielle acordou com o rádio vibrando. Mirella já tava de pé, com a arma na mão.
— Parece que a paz durou pouco. — Mirella murmurou, vestindo a blusa.
— Vou resolver isso. — Gabrielle disse, já no telefone.
Mirella puxou ela pelo braço, deu um beijo rápido.
— Qualquer coisa, me chama. Tô contigo.
Gabrielle assentiu e saiu.
Ali, no calor da Maré, no som agudo dos rádios e das botas subindo as escadas, começava um novo capítulo. Um relacionamento que nasceu do caos, cicatrizes sendo fechadas à força, e uma mulher aprendendo, aos poucos, que até as mais duronas também merecem ser amadas — mas sem perder a guerra.
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Atualizado até capítulo 50
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