02

O som do pagode ecoava alto dentro do bar improvisado na esquina da Travessa 4. A cerveja gelada escorria pela garrafa, a fumaça do cigarro se misturava ao cheiro da carne na chapa, e o calor das vielas parecia apertar ainda mais o ambiente.

Mirella estava jogada na cadeira de plástico, boné aba curva tampando metade do rosto, a Glock disfarçada na cintura e os olhos atentos como sempre. Do lado dela, Emilly, a parceira de todos os corres e uma das poucas pessoas que ela ainda chamava de “minha”.

— Tá diferente, né? — Emilly comentou, puxando um gole da cerveja, o olhar varrendo o bar. — O morro... sei lá. Tá mais frio. Mais fechado.

Mirella deu de ombros, os dedos tamborilando no copo.

— Isso é o efeito Gabrielle Costa. — soltou, com desdém. — Desde que ela pegou o trono da favela, geral anda na linha. Mas na base do medo, não do respeito.

— Tu não curte ela, né?

— Não é questão de curtir, Emilly. É questão de visão. Ela acha que pode controlar tudo pela força, mas esquece que quebrada é sentimento também. O povo sente quem tá por eles. Gabrielle não sente nada. Ela finge que não, mas por dentro? Fria. Que nem gelo.

Emilly riu de canto, maliciosa.

— Tu fala com ranço, mas eu lembro direitinho daquela vez lá em 2020, no baile da Linha. Tu e ela sumiram por horas...

Mirella jogou um gelo em Emilly.

— Foi só uma noite. Cês que viajam. Tava de passagem. Coração nunca foi meu ponto fraco, e você sabe.

— Sei. Só não sei até quando cê vai aguentar esse teu papo de “coração blindado”. Às vezes parece que você quer sentir, mas se sabota o tempo todo.

Mirella ficou em silêncio por um tempo, encarando o copo. O passado dela era selado com cimento. Desde que perdeu os pais, aprendeu a nunca deixar ninguém entrar de verdade. Era mais fácil assim. Mais seguro.

— Foco agora é o centro. Já tô com o canal em São Paulo fechadinho, e mês que vem, se tudo correr certo, tô de volta pra Madri. Um esquema de limpeza de joalheria lá em Málaga me chamou. Grana alta. Sem risco. Sem emoção.

— Vai sumir de novo, né? — Emilly murmurou, com um sorriso triste.

Antes que Mirella respondesse, uma voz conhecida cortou o ambiente:

— Espero que não estejam falando de mim.

As duas viraram ao mesmo tempo.

Sara Costa, a irmã mais nova de Gabrielle, se aproximava com um vestido colado no corpo, sandália dourada e aquele sorrisinho de deboche nos lábios carnudos. O tipo de presença que chamava atenção sem precisar tentar.

— Que cara é essa, Emilly? Não vai me convidar pra sentar?

— Pode sentar, princesa. — Emilly respondeu, mas o tom tinha um quê de provocação e cansaço.

Sara puxou uma cadeira e sentou entre as duas, estalando os dedos pro garçom.

— Três doses de tequila. Por minha conta.

Mirella olhou entre Emilly e Sara. A tensão ali era tão nítida quanto o suor que escorria pelas costas.

— Cês tão de rolo ainda? — perguntou, direta.

Sara soltou uma risada debochada.

— Rolo? Isso é muito forte. A gente... se encontra às vezes. Só isso.

— E transa às vezes também. — completou Emilly, dando um gole na cerveja sem encarar a outra.

— Quando dá vontade. — Sara respondeu, com a língua afiada.

Mirella ergueu as sobrancelhas.

— Uau. Que casal saudável.

— Não é casal, Mirella. — Emilly respondeu seca. — Só duas adultas que sabem separar desejo de apego.

Mirella deu um sorriso sarcástico.

— Ah, claro. Tudo muito maduro até alguém sair chorando no corredor do beco da 9, né?

Sara não respondeu. Só pegou a dose de tequila que o garçom trouxe, virou inteira e lambeu o sal da mão.

— E você, Mirella? Veio visitar ou tá voltando de vez?

— Só tô passando. Tenho compromissos fora. Não me amarro em enraizar onde o clima tá instável.

— Instável? — Sara questionou, com um olhar afiado. — Eu diria que tá mais seguro do que nunca. Minha irmã tem mão firme. O morro tá de pé porque ela segurou quando todo mundo correu.

Mirella se inclinou na cadeira, o olhar firme.

— Ninguém aqui tá negando que ela segurou. Mas cê sabe muito bem que esse trono tem um preço. E às vezes quem paga... nem sabe que tá pagando.

Silêncio.

Sara a encarou por alguns segundos, depois riu e virou a segunda dose.

— Ainda com esse jeito marrenta. Mas tá bonitona, viu. A gringa te fez bem.

Emilly deu uma risada abafada.

— A Mirella sempre foi um problema gostoso.

Mirella revirou os olhos.

— Vocês duas precisam de um divã, um terapeuta e um vibrador novo.

Sara gargalhou.

— E você precisa de um coração.

— Já tive. Perdi numa troca de tiro.

As três riram, mesmo sabendo que o que vinha por trás daquele humor era dor demais pra dizer em voz alta.

Ali, entre garrafas, farpas e olhares atravessados, o clima era uma corda bamba. Mirella sabia que Gabrielle tava por perto, mesmo que não tivesse aparecido. E sabia também que voltar pra Maré era mais do que uma passagem. Era uma armadilha emocional, um laço que ameaçava apertar a qualquer momento.

Mas Mirella Morais não se deixava prender.

Pelo menos, era o que ela repetia toda vez que o nome Gabrielle Costa surgia no pensamento e fazia o peito doer de um jeito que bala nenhuma conseguia curar.

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