03

A noite tinha engolido a favela num silêncio estranho, só quebrado pelo miado de um gato no telhado e os gritos distantes do bar que ainda resistia ao fim da quinta-feira. Mirella subia os becos da Maré com um maço de cigarro no bolso, a mente fervendo e o coração anestesiado. Aquele barulho todo entre Emilly e Sara tinha deixado algo no ar. Não que ela fosse o tipo que se metia, mas Emilly era mais que parceira de corre — era família.

Quando chegou na casa dela, bateu duas vezes, como sempre fazia. Sem resposta. Mais duas. Silêncio.

Mirella forçou a maçaneta e entrou devagar. A luz da sala estava apagada, mas a da cozinha deixava um brilho fraco vazando pela porta entreaberta.

— Emilly? — ela chamou, baixo, já com a mão na cintura, por segurança.

Nenhuma resposta. Só o som abafado de choro vindo do quarto.

Ela caminhou até lá e empurrou a porta com calma. Emilly estava sentada no chão, encostada na cama, os olhos vermelhos, o rosto molhado de lágrimas e uma garrafa de vodka pela metade do lado.

— Caralho, Emilly… — Mirella soltou, fechando a porta atrás de si. — O que foi que aconteceu?

— Nada. — a amiga respondeu, enxugando o rosto com o braço, mas a voz denunciava a mentira. — Só mais um dia sendo otária.

Mirella sentou do lado dela, cruzando as pernas.

— Foi a Sara?

Emilly soltou uma risada amarga.

— Ela só me usa, Mirella. Usa e depois finge que nem me conhece. Acha que é só foda e tchau. Mas... porra, eu me envolvi. Eu me fudir. E ela? Já deve tá com outra, rindo de mim.

Mirella olhou pra ela por longos segundos. Sabia exatamente como era esse sentimento. Aquela vontade maldita de não sentir nada, mas o corpo inteiro traindo a mente.

— Tu se apaixonou por quem não sabe amar, Emilly. — falou, com a voz baixa, firme. — E isso... é uma guerra que tu já começa perdendo.

— E você, Mirella? Nunca amou ninguém, né? Nunca se deixou cair?

Mirella desviou o olhar.

— Só uma vez. E foi o suficiente pra eu aprender.

O nome estava preso na garganta: Gabrielle.

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Horas depois, já era madrugada. Mirella deixou Emilly dormindo e saiu pra esfriar a cabeça. Desceu a escadaria que dava pro campo de futebol, onde agora só o breu dominava. Acendeu um cigarro e ficou ali, escorada no muro, encarando o nada.

— Não imaginei que você ainda fumava.

A voz veio de trás.

Ela virou na hora.

Gabrielle Costa.

Moletom preto, cabelo solto, olhar preguiçoso, mas afiado como navalha. Ela se aproximou devagar, os olhos fixos em Mirella como se estivesse esperando esse momento há dias.

— E eu não imaginei que cê ainda andava sozinha por aqui.

— Maré é minha casa. Nunca precisei de segurança dentro dela. — Gabrielle respondeu, parando a um passo de distância.

O silêncio entre as duas era uma tempestade muda. Tudo gritava, mesmo sem som.

— Soube que tu apareceu no bar com a Sara e a Emilly. — Gabrielle disse, os olhos apertando. — Cuidado com o que você mexe.

Mirella tragou fundo e soltou a fumaça devagar.

— Se tua irmã não sabe lidar com as consequências dos desejos dela, o problema não é meu. Só fui consolar uma amiga.

— É... consolar você sempre soube. — Gabrielle respondeu, num tom cheio de veneno e desejo mal disfarçado.

Mirella deu dois passos pra frente. Agora era ela quem invadia o espaço.

— Tá querendo medir território comigo, Gabrielle? Ou tá só procurando uma desculpa pra sentir de novo o que cê finge que esqueceu?

Gabrielle riu de canto, mas os olhos estavam diferentes. Ardendo.

— Você sumiu, Mirella. Me deixou com gosto de sangue e saudade. Aquela noite... nunca saiu da minha pele.

— Aquela noite foi só uma válvula de escape. — Mirella rebateu, mesmo sabendo que estava mentindo até pra si.

— Jura? — Gabrielle se aproximou até seus rostos quase se tocarem. — Então por que tu tá com a respiração presa agora?

Mirella engoliu seco. O cheiro da Gabrielle, aquela mistura de perfume forte com pólvora e desejo, ainda era o mesmo.

— Porque você me irrita. — murmurou.

— E te excito. — Gabrielle respondeu, colando os corpos.

O beijo veio como um tiro no escuro. Intenso, faminto, desesperado. Sem aviso. Sem defesa. As bocas se chocaram, as mãos se agarraram, e anos de negação explodiram ali, contra a parede fria da quadra abandonada.

Mirella empurrou Gabrielle com força, colando ela na parede. As mãos seguraram seu rosto, e os lábios se devoraram com raiva. Mas por trás da fúria, havia saudade. Dor. Repressão demais pra caber em um só toque.

Gabrielle puxou a blusa de Mirella, roçando os dentes no pescoço dela.

— Você me odeia? — sussurrou.

— Não. Eu me odeio por não conseguir te esquecer.

O beijo continuou. As roupas foram ficando fora do lugar, as mãos explorando caminhos antigos. Cada toque era um flash do passado. Cada gemido, um lembrete do que nunca foi superado.

Mas quando Mirella se afastou, ofegante, o olhar dela estava escuro.

— Isso não vai acontecer de novo.

Gabrielle ajeitou o cabelo, sorrindo com cinismo.

— Vai sim. Você pode fugir pro outro lado do mundo, Mirella... mas meu nome vai continuar queimando na tua pele.

E com isso, Gabrielle virou as costas e desapareceu entre os becos, deixando Mirella ali, com o gosto dela nos lábios e a cabeça em colapso.

Ela tinha prometido a si mesma que nunca mais se deixaria envolver.

Mas Gabrielle Costa era mais que um erro.

Era um vício.

E o vício... sempre cobra.

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