A noite caiu devagar sobre a cidade. Lá fora, o vento começava a soprar mais frio, mas dentro do bar, o ar ainda era denso, quase imóvel. Lívia sentia os olhos arderem, não apenas pelo álcool, mas pela exaustão emocional. A presença silenciosa de Gabriel ao seu lado era como um cobertor discreto — ele não invadia, não pressionava. Apenas estava.
— Já pensou em sumir por uns dias? — ele perguntou de repente, sem tirar os olhos do copo de água que segurava.
— Todos os dias desde que acordei hoje — ela respondeu com sinceridade. — Só não pensei que, quando o dia acabasse, eu teria motivos reais pra isso.
Gabriel fez um leve movimento com a cabeça, como se compreendesse mais do que estava dizendo.
— Às vezes, quando o chão desaparece, a gente não precisa de um mapa. Precisa de abrigo.
Lívia virou-se um pouco em sua direção. Era esquisito o quanto ela se sentia à vontade com ele. Ele não fazia perguntas invasivas. Não dizia frases feitas. Apenas falava com calma, como se estivesse construindo um espaço seguro para ela respirar.
— Você parece saber demais sobre essa sensação — ela comentou, tentando entender por que aquela figura sempre lhe pareceu envolta em silêncio.
Ele apoiou os cotovelos na mesa e juntou as mãos.
— A insônia não é o problema. É o que vem com ela. As memórias, as culpas, os cenários que não voltam a ser o que eram. — Fez uma pausa. — Perdi minha irmã há dois anos. Um acidente de carro. Eu estava com ela. Eu... saí ileso. Ela, não.
Lívia ficou em silêncio, absorvendo a confissão. Era íntima. Dolorosa. E ele a dissera com uma serenidade que partia o coração.
— Sinto muito, Gabriel.
— Não precisa dizer nada. Só quis que soubesse que eu entendo o que é perder o chão. Às vezes, a gente precisa de algo — ou alguém — que nos lembre como pisar firme de novo.
Ela ficou quieta, sentindo a garganta fechar com uma dor nova. Não era só sobre Caio. Era sobre tudo que ela havia aguentado sem reclamar. A pressão da família, o peso de sempre ser a “sensata”, a amiga leal, a parceira confiável. E agora, ali, com os olhos cheios de lágrimas e os pés descalços de certezas, ela só queria alguém que dissesse: "você pode parar de ser forte agora."
— Preciso de um hotel — murmurou, passando as mãos pelo rosto. — Não tenho nem coragem de voltar pra casa. Meu pai vai perguntar pelo Caio. Vai dizer que eu devia ter lutado mais. Como se eu já não tivesse lutado até me esvaziar.
Gabriel hesitou. Depois puxou algo da carteira e colocou sobre a mesa.
— Aqui está o endereço de um lugar calmo. Pouca gente conhece. Fica fora do centro. É de confiança. Diga que eu indiquei.
Lívia olhou para o papel, surpresa. Era uma pousada, com nome simples. Havia algo reconfortante naquele gesto, naquela forma de cuidar sem parecer piedoso.
— Você sempre oferece esse tipo de ajuda pra mulheres bêbadas e abandonadas em bares?
— Só quando reconheço que elas não deveriam ter sido deixadas em pedaços por alguém que nunca mereceu estar ao lado delas.
Ela sorriu, mesmo com os olhos marejados. Um sorriso de quem, pela primeira vez em dias, sentia que estava pisando fora da lama.
Duas noites depois, Lívia estava deitada na cama da pousada, encarando o teto. Ainda não tinha tido coragem de contar ao pai sobre a separação. O celular estava cheio de mensagens da família de Caio, todas fingindo que nada tinha acontecido.
Gabriel ligou.
— Está melhor hoje? — ele perguntou.
— Talvez. Menos enjoada de mim mesma.
Ele riu baixo.
— Boa resposta. Vai sair amanhã?
— Pensando em visitar uma empresa de design. Um amigo meu de faculdade abriu uma filial aqui. Nada muito certo, mas talvez seja uma chance.
— É uma boa ideia. Sair da cama também é uma vitória.
Houve uma pausa. Então ele disse, com a voz mais firme:
— Lívia, posso te propor uma coisa? Sei que vai parecer estranho, mas só me escuta primeiro.
Ela se sentou na cama, apertando o celular contra a orelha.
— Estou ouvindo.
— Lembra quando disse que você precisava de abrigo, e não de mapa?
— Lembro.
— Pois é. Eu também estou tentando escapar de algumas pressões. Minha família tem uma expectativa absurda sobre mim. Uma herança envolvida. Há uma cláusula… só recebo se estiver casado.
Lívia franziu o cenho. Sentou-se ainda mais ereta.
— Você está dizendo que quer…?
— Um casamento. De fachada. Só por um ano. Você pode ter tranquilidade, usar meu nome se quiser pra afastar quem te persegue, e eu resolvo minha parte do problema. Sem romance, sem obrigações íntimas. Um contrato, apenas. Eu pago todas as despesas, e quando acabar, a gente dissolve tudo de forma limpa.
Ela ficou em silêncio.
Gabriel prosseguiu com cuidado:
— Não é uma proposta maluca de alguém apaixonado. É algo que pode ser útil pra nós dois. E... sinceramente? Você não merece continuar mendigando respeito de pessoas que te machucaram.
Lívia sentiu o coração disparar. Era uma loucura. Mas não era mais louco do que tudo que vivera nos últimos dias.
— Gabriel… por que eu?
— Porque você é a primeira pessoa que não me tratou como um homem quebrado. E porque, mesmo em pedaços… você ainda é a mulher mais inteira que eu já conheci.
A linha ficou silenciosa por um tempo.
Lívia sorriu, mordendo o canto dos lábios.
— Me manda esse contrato, então.
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Atualizado até capítulo 31
Comments
Marisa Sampaio
comecei a ler hoje estou gostando e muito!
2025-06-28
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Sandra Camilo
isso vai virar amor❤️❤️
2025-06-26
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Fatima Pinheiro
Vamos Q Vamos Espera Q Ñ Demore As Atualizações Pois Está Muito Boa 😍👏👏
2025-06-27
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