Às vezes, o passado não grita.
Só sussurra.
Bem baixinho, pra não deixar a gente esquecer.
Mais uma manhã comum na floricultura.
Cores por todos os lados, perfume no ar, e a mesma correria de sempre.
Casais indecisos, clientes que não sabem o nome da flor que querem, e a dona Vânia gritando do fundo como se a loja fosse um campo de futebol.
— Isa, pega o pedido do consultório! Tá no canto esquerdo, marcado com fita verde!
— Já tô indo! — respondi, prendendo o cabelo e limpando as mãos num pano.
Foi aí que o sino da porta tocou.
Olhei instintivamente.
Não era cliente.
Era um homem. Alto, de roupas escuras. O rosto parcialmente escondido por um boné.
Não falou nada. Só carregava uma caixa de papelão nos braços.
— Entrega pra… Isabela — disse, em tom seco.
— Pra mim? — franzi o cenho, surpresa.
Assenti, peguei a caixa das mãos dele, e quando olhei de novo… ele já tinha ido embora. Rápido demais. Silencioso demais.
— Entregaram flor pra você? — perguntou dona Vânia, se aproximando. — Tá com sorte, hein?
Mas eu só olhava pra caixa.
Ela era simples por fora, mas estava estranhamente fria.
Abri com cuidado.
Dentro, havia um arranjo com flores roxas e pretas.
Exóticas. Elegantes. E sombrias.
— Isa… isso é flor de lótus preta?
— Acho que sim — murmurei, tocando uma das pétalas.
E então vi:
Um envelope branco, preso por baixo.
Com meu nome escrito à mão: Isabela.
O coração acelerou.
Não era de cliente.
Não era de amigo.
E nem parecia de admirador.
Algo naquela entrega me deixava com a pele arrepiada.
— Não veio cartão? — insistiu Vânia.
— Não… só o envelope.
Guardei ele na bolsa.
Não ia abrir ali, com a loja cheia, clientes entrando e saindo.
Mas a caixa ficou na minha cabeça o resto do dia.
À tarde, tentei focar nas encomendas, no som do rádio antigo, nas piadas bobas da dona Vânia.
Mas minha mente voltava pro arranjo.
Pra letra.
Pra forma como o entregador olhou pra mim.
Frio. Como se soubesse de algo que nem eu sabia.
Me sentei por um instante no fundo da loja e encostei a cabeça no armário.
Fechei os olhos.
E então ela veio.
Minha mãe.
Raramente lembrava dela com tanta clareza.
Mas, naquele momento, parecia que o cheiro dela estava ali — entre lavanda e flor de laranjeira.
E as palavras que ela dizia voltaram com força:
— “Flor também sente falta, Isa. Não é só regar. Tem que conversar com elas… ou elas murcham por dentro.”
Sorri de canto.
Ela se foi cedo demais.
Câncer. Silencioso. Mortal.
Meu pai? Nunca conheci.
Ele se foi antes mesmo de mim.
Abandonou a casa, a responsabilidade, tudo.
Talvez por isso eu gostasse tanto de flores.
Elas também tinham que renascer sozinhas.
—
Voltei ao balcão e ajeitei um buquê de girassóis com cuidado.
Mas os pensamentos ainda estavam na caixa.
Na flor.
Na letra.
E no nome escrito nela.
O meu nome.
Dona Vânia, distraída com outra entrega, nem reparou que eu estava mais quieta do que o normal.
Talvez ela achasse que fosse cansaço.
Talvez eu também quisesse acreditar nisso.
Pouco antes de fecharmos, um homem entrou.
Não era o entregador de sempre.
Era alto, usava um boné escuro e manteve os olhos abaixados.
Escolheu um buquê já pronto, pagou em dinheiro e saiu sem dizer uma palavra.
Mas antes de ir, olhou diretamente pra mim.
Não com interesse.
Com… certeza.
Como se já me conhecesse.
O tempo pareceu congelar por dois segundos.
E então ele foi embora.
Simples assim.
— Isa, você tá bem? — perguntou dona Vânia, limpando as mãos num pano.
— Tô, só… cansada.
— Então vai descansar, menina. Você não é máquina.
Sorri de leve.
Mas quando tranquei a porta da loja naquela noite, a rua parecia mais escura que o normal.
E mesmo com todo o movimento ao redor, senti que alguém me observava.
No caminho de casa, não resisti.
Peguei o envelope da bolsa e abri com cuidado.
Dentro havia um papel branco, dobrado em três partes.
A caligrafia era a mesma de fora: forte, firme, meio bruta.
> “As flores escondem segredos.
Cuide bem delas.
A sombra já te viu.”
Nada mais.
Sem assinatura.
Sem explicação.
Sem lógica.
Só uma frase que ficou ecoando na minha cabeça até o travesseiro me engolir de madrugada.
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> Naquela noite, não consegui dormir.
Não por medo.
Mas por saber que…
a paz que eu conhecia estava começando a desbotar.
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Atualizado até capítulo 53
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