Jantar à beira do abismo

No dia seguinte, a casa parecia um campo minado. Acordei com a cabeça a mil e o corpo cansado como se tivesse corrido com o Nick naquela pista escondida. A diferença é que ele teve o vento batendo no rosto, e eu fiquei com a lembrança do olhar dele cravado no meu peito.

Levantei, tomei banho e desci pra cozinha, torcendo pra encontrar só a cozinheira ou, sei lá, um fantasma. Mas não. Tava ele lá.

Nick. Sentado no balcão, camiseta preta colada no corpo, cabelo bagunçado e um copo de café na mão. Ele nem levantou os olhos quando entrei.

— Bom dia — falei, tentando soar casual, mas minha voz saiu meio presa.

Ele deu um gole no café e respondeu sem me encarar:

— Dormiu bem, xereta?

Revirei os olhos e fui até a geladeira.

— Melhor do que você imagina.

Peguei um suco qualquer, mesmo sem fome, só pra não sair de mãos vazias. O silêncio que se instalou entre a gente era grosso, quase palpável. E a tensão... nossa. Parecia que qualquer faísca ia incendiar a cozinha inteira.

— Me segue de novo e eu faço você se arrepender — ele disse, ainda sem olhar pra mim.

— E se eu disser que valeu a pena?

Aí sim ele virou.

Devagar.

Me encarou com aqueles olhos escuros, profundos, perigosos.

— Então você é mais burra do que parece.

— E você mais metido do que eu pensava.

— Não é metidez, Noah. É aviso.

Ele se levantou e caminhou até mim. Cada passo parecia ecoar dentro da minha barriga. Quando parou na minha frente, tão perto que eu podia contar as sardas do pescoço dele, eu senti aquele arrepio subindo pela espinha.

— Esse mundo não é pra você. Não é um jogo. E eu não sou um brinquedo.

— Nunca disse que era.

— Mas tá tentando brincar mesmo assim.

Eu respirei fundo, tentando manter o controle. Mas tava difícil. Ele era irritante. Grosso. Arrogante. E ao mesmo tempo... meu Deus, ele era feito de caos e charme.

— Não sou uma garotinha perdida, Nick. Eu aguento.

— Esse é o problema — ele disse, quase num sussurro. — Você aguenta. Mas não deveria.

Antes que eu conseguisse responder, o celular dele vibrou. Ele olhou a tela, bufou e saiu da cozinha sem dizer mais nada. Me deixando ali com meu suco quente e o coração batendo no ritmo de uma bateria de escola de samba.

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No fim da tarde, minha mãe apareceu no meu quarto como quem traz notícia boa.

— Querida, hoje vamos ter um jantar em família. Só nós quatro.

"Família", ela disse.

Quase ri.

Ela saiu saltitante e eu fiquei olhando pro espelho, tentando decidir se valia a pena caprichar no visual. No fim, escolhi um vestido leve, meio justo, decote só o suficiente pra provocar. Porque se era pra encarar Nick num jantar cheio de falsidade, eu ia fazer ele engasgar com cada garfada.

Quando desci, ele já tava lá. Claro.

Camisa branca com as mangas dobradas, a tatuagem do braço à mostra, cabelo preso num coque desleixado. Lindo demais pro próprio bem.

Ele me viu e desviou os olhos, mas eu vi a mandíbula dele travar. Ponto pra mim.

— Uau, Noah, você tá maravilhosa — meu padrasto disse, educado demais pra ser sincero.

— Obrigada, senhor arrogância — pensei, mas só sorri.

Minha mãe me lançou um olhar de aprovação. Ela adorava quando eu parecia a filha perfeita que ela queria mostrar pros outros.

O jantar começou até calmo. Conversa sobre negócios, viagens, projetos sociais. Eu tava entediada e impaciente. Até que alguém tocou no assunto proibido.

— E você, Nick? Vai continuar com essa coisa de motos por muito tempo? — o pai dele perguntou, casual.

Nick largou os talheres com força controlada. Olhou pro prato e depois pro pai.

— “Essa coisa” é o único lugar onde eu não sou só o seu filho rebelde.

— É perigoso. Você sabe disso.

— Viver é perigoso.

Minha mãe tentou amenizar:

— Nick, querido, seu pai só se preocupa com você...

— Ele se preocupa com a imagem — Nick cortou.

A tensão invadiu a mesa. Eu bebia meu vinho devagar, só assistindo o circo pegar fogo. Mas claro que ele ia me puxar pra dentro do drama.

— E você, Noah? O que achou do meu mundo? — ele perguntou, olhando direto pra mim.

Minha mãe arregalou os olhos.

— Como assim?

— Ah, ela foi me visitar ontem — ele disse com um sorriso cínico. — Foi até lá escondida. Quase virou manchete de jornal.

— Noah! — minha mãe exclamou. — Você foi num desses lugares horríveis? Por que não me contou?

— Porque você nunca me escuta — respondi, seca.

Nick me encarava, provocando.

— E aí? Vai voltar lá?

— Talvez — disse, encarando ele de volta. — Tô começando a gostar do perigo.

O olhar dele mudou. Ficou mais... denso. E eu sabia que tinha atravessado uma linha invisível ali. A noite terminou com mais pratos intocados do que palavras ditas.

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Mais tarde, já no meu quarto, deitei na cama e fiquei olhando pro teto. Tentando entender que loucura era essa que tava me consumindo. Aquilo não era só rebeldia. Não era só tesão. Era tipo uma guerra silenciosa.

E eu tava perdendo.

Ou ganhando.

Nem sei mais.

De repente, ouvi batidas na porta. Três toques secos. Rápidos. Me levantei devagar, pé descalço no chão gelado.

Abri a porta.

Nick tava ali.

Sem camisa.

Respiração pesada.

— Não consigo parar de pensar em você.

O mundo parou.

— Então para de tentar — sussurrei.

Ele entrou. Sem permissão. Sem pedir. Sem hesitar.

Fechei a porta atrás dele.

E naquele quarto, naquele silêncio tenso e íntimo, tudo o que tava implodindo dentro da gente finalmente ameaçou explodir.

Mas...

Ele parou.

Encostou a testa na minha.

E sussurrou:

— Você me destrói.

E saiu.

Me deixando com o coração em ruínas.

E a certeza: a culpa não era só dele.

Era minha também.

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