A fumaça do cigarro e o cheiro de cerveja velha grudado no ar, tão constante quanto a placa de neon piscando na janela "Den Of The Fire Angels". Meus dedos tamborilavam no meu copo de chopp vazia, os olhos varrendo a porta mais uma vez.
Onde diabos estavam todos? A reunião "Angels of Fire" foi marcada para às nove, e eram nove e quinze. Só eu, o Tony encostado no fliperama com cara de quem queria estar em qualquer outro lugar, e o Velho Sal no fundo, roncando no sofá de couro rachado, na nossa sala de reuniões.
A imagem da neta de Walter, porém, teimava em ficar. Aqueles olhos amendoados sob a luz do poste, o jeito quieto e refinado, os lábios carnudos mordendo de leve enquanto me encarava na calçada.
Dois meses. Dois meses e eu nem sabia que ela existia, malhando nas madrugadas, na minha academia. E o Walter… o velho Walter, foi um pai pra mim, depois que o meu se foi, não tinha me dito que a neta estava aqui.
E eu estive lá, fui na oficina e mesmo assim nenhuma menção da neta.
Guardou pra si. Como se… como se soubesse que eu iria me interessar. Ou pior, que ela deveria ficar longe de mim.
O estrondo da porta batendo contra a parede me fez pular. Era o resto da turma, chegando em grupo, botas batendo no assoalho de madeira, risadas altas e o cheiro de estrada e gasolina. O Paco, a Rita, o Gordo, o Magro (que não era magro), e o Kid, o caçula.
— Bennet!
o Paco gritou, erguendo a garrafa de cerveja que já trazia na mão.
— Tá parecendo o Velho Sal aí, só faltou roncar!
— Tava roncando por dentro, Paco
gritei de volta, erguendo-me do banco. O barulho encheu o lugar, afastando um pouco a sombra da morena. Por enquanto.
— Vamos começar antes que o Sal acorde e queira contar história de moto velha outra vez.
Reuni a turma em volta da mesa grande, manchada de círculos de copo e cicatrizes de faca. Falei da Feira Anual, da tradição de mais de dez anos. Arrecadar itens de higiene, alimentos não perecíveis, brinquedos novos.
Os dois orfanatos que a gente ajudava desde sempre. O "Lar do Caminho" e a "Casa do Sol" contavam com aquilo.
— É a nossa cara, gente
bati no tampo da mesa, sentindo o peso da responsabilidade, mas também o orgulho bobo que sempre vinha.
— Não é caridade de rico. É irmão ajudando irmão. Quem pode doar mais, doa mais. Quem pode só um pouco, doa um pouco. O importante é mostrar pra essas crianças que elas não estão esquecidas.
Vi os acenos, as expressões sérias concordando. Até o Tony largou o fliperama e veio pra perto. Era algo que unia todo mundo, até nas brigas internas.
— O ponto de coleta vai ser aqui no bar, como sempre
continuei.
— A Rita vai coordenar os turnos de recebimento. Paco, tu e o Kid cuidam da logística, do caminhão pra levar tudo no dia seguinte. Magro, Gordo, panfletagem e divulgação nas redes sociais do clube. Alguma duvida?
Olhei em volta. Nenhum sinal negativo.
— Beleza. Então…
Foi quando o Tony colocou uma mão pesada no meu ombro.
— Deixa o resto comigo, Adrian
disse, baixinho, o olhar entendido. Ele sabia ler meu cansaço, minha cabeça longe.
— Tu ta com a cara de quem precisa resolver uns pepinos antes que explodam. Vai. A gente fecha aqui.
Agradeci com um aceno. Pepinos. Um deles estava estacionado ali fora: o Toyota amarelo da minha irmã Helen, com o carburador mais capenga que um perna de pau. Promessa era promessa. Tinha que levar pra oficina do Walter hoje. E o pensamento, traiçoeiro, voltou: Será que ela estaria lá? A neta do velho. A linda e frágil de olhos de avelã.
— Valeu, Tony
gritei por cima do barulho, pegando meu jaquetão.
— Tudo combinado, o guincho do Walter tá lá fora. O carro tá já tá no jeito.
Saí do barulho do bar para fora. O Toyota amarelo parecia uma mancha de mostarda sob a luz do sol das quatro da tarde. Respirei fundo, tentando limpar a cabeça da fumaça e da imagem persistente da garota bonita e fora dos limites.
Precisava focar: ligar o guincho do Walter, prender firme, levar até a "Oficina Walter's".
Foi então que os ouvi. Vozes baixas, tensas, vindas da esquina do bar, perto da entrada lateral. Uma voz era inconfundível: a da Helen, aguda, com aquela lâmina de aço por baixo que só aparecia quando ela tava realmente puta.
A outra voz, masculina, mais suave, mas insistente, me fez encolher os dedos dentro das luvas. Joshua. Joshua Miller. O sobrinho dourado do prefeito. O playboy da cidade que achava que o sol nascia no bolso do tio.
Dobrei a esquina num passo largo. Eles estavam parados perto da porta de serviço, Helen com os braços cruzados, o rosto fechado, virado para o lado. Joshua, esguio, bem vestido demais para o meu bar, estava muito perto, uma mão quase tocando o braço dela.
Ele falava algo baixo, rápido. Ela sacudiu a cabeça, negando, tentando dar um passo para trás, mas a parede estava ali.
O sangue começou a cantar nos meus ouvidos, um zumbido familiar, pré-luta. Não pensei. Só me movi. Em três passos, eu estava entre eles, meu corpo grande bloqueando completamente a visão de Helen e encarando Joshua de cima.
Ele recuou, surpreso, os olhos claros arregalados.
— Problema aqui?
Minha voz saiu mais baixa e mais áspera do que eu pretendia. Uma corrente de gelo, não de fogo.
Joshua recuperou a compostura rápido demais, um sorriso social esticando os lábios.
— Adrian! Nada, nada. Só uma conversa rápida com a Helen sobre… sobre aquele evento da prefeitura mês que vem. Queria confirmar uns detalhes.
O olhar dele fugiu do meu, pousando em Helen atrás de mim.
— Mas já está resolvido, não é, Helen?
Helen não disse nada. Senti a presença dela, rígida, às minhas costas.
— Tá resolvido, Joshua
eu disse, mantendo o olhar fixo nele. Não era pergunta. Era ordem.
— A Helen já te deu a resposta que tinha pra dar. Agora, se não é demais, a gente tem um compromisso.
Dei um leve passo à frente, só o suficiente para ele sentir a invasão de espaço.
O sorriso dele congelou. Os olhos piscaram, uma fração de segundo de raiva antes da máscara voltar.
— Claro, claro. Não quero atrapalhar. Boa tarde, então. Helen.
Ele deu um aceno forçado e se virou, andando rápido na direção contrária, o passo ecoando na calçada vazia.
Fiquei parado, respirando fundo, observando ele sumir na esquina. O zumbido nos ouvidos diminuiu, mas a tensão nos ombros continuava. Só então me virei para Helen.
Ela estava encostada na parede agora, os braços ainda cruzados, mas mais soltos. Olhava para o chão, mordendo o lábio inferior.
Tinha uma sombra nos olhos que eu conhecia bem. Medo? Raiva? Vergonha? Acho que era uma mistura de tudo.
— Qual era o problema real?
perguntei, tentando suavizar a voz, mas ainda soando áspero.
Ela ergueu o rosto. Os olhos, tão parecidos com os da nossa mãe, brilhavam com uma teimosia ferida.
— Nada, Adrian. Sério. Só o Joshua sendo… o Joshua. Insistente. Já tava indo embora quando você chegou.
— Insistente como?
insisti, cruzando os braços também. O cheiro do perfume caro dele ainda pairava no ar, misturado ao cigarro da minha roupa. Eu não gostava.
— Só… insistente.
Ela evitou meu olhar, passando uma mão no rosto.
— Queria saber se eu ia no jantar beneficente dele semana que vem. Disse que não. Ele não aceitou bem. Pronto. Fim da história.
Ela empurrou-se da parede, endireitando a blusa.
— Obrigada, de qualquer forma. Por aparecer.
O agradecimento saiu sincero, mas rápido, como se queimasse a língua.
— Helen…
comecei, mas ela já estava se movendo, passando por mim em direção à rua onde carro estava.
— Vai, Adrian.
Ela não olhou para trás, a voz um pouco trêmula, mas firme.
— Leva o carro pro Walter. Eu pego uma carona com a Rita. E… não se preocupa. Tá tudo bem.
Fiquei parado, vendo ela atravessar a rua, a silhueta esguia e decidida indo direto para a porta do Bar. A Rita apareceu na entrada, abraçando-a rapidamente antes de entrarem juntas. O barulho do bar as engoliu.
"Tá tudo bem."
A frase dela ecoou, vazia. Joshua Miller não insistia em jantares beneficentes com aquele tom, com aquele olhar. Sabia que não. Helen estava escondendo algo. Como sempre fazia quando achava que eu poderia exagerar. Como se proteger a irmã mais nova fosse exagero.
O frio da noite entrou nos ossos. Joshua Miller. Nome de gente fina, com conexões. O tipo de problema que não se resolvia com os punhos, por mais que meus dedos ainda formigassem com a vontade de ter segurado ele pelo colarinho da camisa cara. Ja fiz isso. Foi bom. E aínda ganhei uma grana pra quebrar o nariz dele.
Olhei para a porra do carro amarelo. O Walter. A oficina. A possibilidade de ver ela.
Mas o gosto na boca agora era amargo. O zumbido de raiva contida substituiu a ansiedade doce. Joshua tinha estragado meu dia. E a preocupação com Helen, uma pedra fria no estômago, afastou momentaneamente os olhos de avelã. Só momentaneamente.
Resmungando pra mim mesmo, virei as costas para o bar e fui buscar o guincho de Walter, que Tony trouxe pra oficina.
Tinha um Toyota ridículo e capenga para rebocar, e uma conversa incômoda com o sobrinho do prefeito para adiar, mas não esquecer.
A noite, que prometia um fio de esperança, agora tinha o gosto pesado da cidade pequena e das suas pequenas podridões. E eu, Adrian Bennet, estava metido até o pescoço nelas, como sempre.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 57
Comments