O ronco baixo da máquina de remada era minha trilha sonora. Pouco peso, mas constante. Respirava fundo, sentindo o ar gelado do ar-condicionado bater no suor da nuca. Mais uma série.
Os músculos das costas queimavam docemente, uma sensação de conquista que só um dia de paz e trabalho me davam.
Alonguei os braços acima da cabeça, a coluna estalando de alívio. Praticamente vazia, a academia tinha uma paz noturna que eu adorava.
Só o som das máquinas, um rapaz tirando fotos de frente ao espelho enquanto levantava peso, o bufado distante do velho enquanto erguia um peso maior do que o meu próprio peso, e as risadinhas abafadas das senhoras do zumba gravado, que agora estavam sentadas no chão se alongando. Normal. Tranquilo. Meu refúgio.
Foi quando o celular vibrou com força no bolso da minha legging, rompendo o silêncio. Olhei para o relógio no pulso: 2:17 da manhã.
Quem diabos...? Um frio súbito percorreu minha espinha. Só podia ser emergência ou nada que me deixaria feliz. Puxei o aparelho com dedos que tremiam, a tela iluminando meu rosto suado.
"Vovô Walter".
O alívio foi tão intenso que quase ri. Claro. Só ele mesmo pra ligar nessa hora, sem noção do susto que dava.
— Alô? Vovô?
minha voz saiu um pouco ofegante ainda.
— Cecília!
a voz dele, rouca e familiar, ecoou no meu ouvido, cheia daquela energia teimosa que ele nunca perdia, nem de madrugada.
— Acabando a farra aí, corujinha? Ou já virou morcego?
Soltei um riso baixo, enxugando o suor do pescoço com a toalha. "Corujinha". O apelido vinha desde criança, por causa das minhas madrugadas lendo com uma lanterna debaixo do cobertor.
—Tô acabando de me alongar agora, vô. Já vou embora, prometo. Tá tudo bem aí?
— Tudo bem, princesa. Só tô indo dormir e lembrei que minha neta coruja deve tá voando por aí ainda. Cuidado com o lobo mau, hein?
brincou, mas havia uma preocupação genuína sob o tom leve.
— Lobo mau aqui só se for um ar-condicionado quebrado, vô. Já tô saindo. Boa noite, durma bem.
— Boa noite, corujinha. Dirige com cuidado.
Desliguei, guardando o celular com um sorriso. Vovô Walter. O único ser humano nesse planeta que podia me chamar às 2 da manhã e só me deixar com vontade de abraçar ele. E sei que ele só vai dormir de verdade quando eu entrar pela porta.
Enfiei a toalha suada na mochila, dei uma última olhada ao redor. O cara grande, estava atrás do balcão da recepção agora, cabisbaixo sobre uma revista de esportes grossa.
Parecia mergulhado numa matéria, a testa franzida, os dedos sujos de graxa virando as páginas com certa violência contida.
As luzes baixas destacavam as tatuagens nos braços musculosos, rosas em um é um anjo no outro, os ombros largos sob a regata velha. Intimidante, mas... concentrado. Alheio.
Caminhei em silêncio até a caixa de fichas, abri com cuidado e devolvi a minha a verde.
O clique da tampa fechando pareceu ecoar. Virei-me para a saída.
— Boa noite
disse, direcionando a voz para ele atrás do balcão.
Ele ergueu a cabeça tão rápido que quase assustei de novo. Os olhos dele, um castanho escuro, intenso encontraram os meus por um segundo. Pareceu surpreso, como se tivesse me esquecido ali.
— Boa noite
respondeu, a voz mais rouca do que eu lembrava. Um aceno breve com a cabeça.
Senti um calor estranho subir pelo pescoço. Apertei o passo, a porta deslizante abrindo para a umidade quente da noite que contrastava com o ar gelado de dentro. Respirei fundo.
Ar livre. Meu refúgio sobre rodas, o velho Camaro IROC-Z 1989 do vovô Walter, estava parado sob o poste de luz mais próximo, a pintura vermelha fosca brilhando fracamente.
Senti falta do meu velho Charger.
Mas o do vovô era um tanque de guerra com assentos de couro rachado. Entrei, o cheiro característico de gasolina, couro velho e tabaco de charuto do vô me envolvendo. Conforto. Girei a chave.
O motor roncou forte, fiel. Engatei a ré e soltei a embreagem devagar, dando leve acelerada. Mas alguma coisa estava errada. O volante puxou bruscamente para a direita, pesado, desobediente. Um rastro baixo, arrastado, vinha de trás.
— Não. Não agora.
Parei imediatamente, o coração batendo mais rápido. Desci, contornando o carro. Lá estava. O pneu traseiro direito, murcho, vergonhosamente colado no asfalto. Um prego? Vidro? Maldita sorte. Olhei para o céu escuro, nenhuma estrela. Vai chover.
— Ótimo.
Abri o porta-malas com um gemido metálico. O estepe estava lá, velho mas inteiro, e o macaco. Vovô me ensinara a trocar um pneu com cinco anos, usando uma chave de roda maior que meu braço.
"Mulher independente, neta, não fica à mercê de homem nenhum"
Ele dizia, com orgulho. Ajeitei o macaco sob o eixo, para começar a bombear. Estava soltando os primeiros parafusos da roda, a chave rangendo com a ferrugem, quando ouvi passos rápidos se aproximando.
— Problema?
A voz grave veio de trás de mim.
Virei, ainda agachada. O cara da academia estava ali, a poucos passos, as mãos enfiadas nos bolsos da calça moletom, mas os ombros tensos. A luz do poste iluminava metade do seu rosto, destacando a linha forte da mandíbula, a cicatriz discreta perto da orelha. Parecia ainda maior ali, na calçada escura.
— Pneu furado
respondi, levantando-me e limpando as mãos na lateral da legging.
— Mas tudo sob controle. Já tô trocando.
Ele olhou para o estepe no chão, para o macaco, depois para mim. Um leve arco de surpresa apareceu na sobrancelha.
— Desde os meus cinco anos, meu avô já me ensinava
acrescentei, tentando soar mais confiante do que me sentia. A noite estava quieta demais, e ele... muito presente.
Ele deu um passo à frente, com os olhos examinando o carro, depois fixando em mim com uma intensidade renovada.
— É o Camaro do Walter.
Afirmou, não perguntou. O tom dele mudou, um reconhecimento imediato.
— O velho Walter. Você... você é a neta dele?
Fiquei paralisada por um segundo. Ele conhecia o vovô? Era uma cidade pequena, eu não devia estranhar.
— Sim...
confirmei, cautelosa.
— O senhor conhece meu avô?
Um sorriso quase imperceptível tocou os lábios dele, apagando um pouco da dureza do rosto.
— Conheço o Walter desde que nasci, praticamente. Ele e meu velho eram... parceiros de copo e de confusão, vamos dizer assim.
O sorriso se ampliou, genuíno por um instante.
— Ele vivia falando com orgulho da neta. A neta estudiosa. Não sabia que você estava na cidade. Muito menos que malhava na minha academia.
Minha academia. Então ele era o dono. Adrian Bennet. O nome que já ouvi dele de Lucy, e agora o nome ganhou substância.
— Estou na cidade há uns dois meses
expliquei, encurtando a distância.
— Pra ficar um tempo com ele. E... gosto de malhar de noite. É mais tranquilo. Me ajuda a dormir.
Ele olhou novamente para o pneu murcho, o macaco, a chave na minha mão. O sorriso suavizou, mas os olhos mantiveram aquele brilho interessado, perscrutador.
— Dois meses e eu nunca te vi...
murmurou, mais para si mesmo. Depois, inclinou a cabeça para o carro.
— Deixa eu fazer isso pra você? É o mínimo, considerando que o Walter provavelmente salvou minha pele mais vezes que eu consigo contar nos dedos.
— Não precisa, sério
protestei, segurando a chave com mais força.
— Eu consigo.
— Eu sei que consegue
ele disse, e havia um respeito real na voz.
— Mas eu insisto. O velho me mataria se soubesse que deixei você aí se virando sozinha de madrugada. Além do mais...
Ele estendeu a mão, não para pegar a chave, como um convite.
— É mais rápido com quatro braços. E os meus são bons pra alguma coisa além de virar página de revista.
Hesitei. A independência gritava dentro de mim, mas a lógica também. Ele era grande, forte, e conhecia o vovô.
E... havia uma insistência gentil nele que desarmava. Um pedido quase. Relutantemente, entreguei a chave de roda.
— Obrigada
disse, baixinho, enquanto entregava a chave na mão dele
— Não é nada.
Ele agarrou a chave com uma mão que quase engolia o cabo. Em segundos, estava agachado ao lado do carro, os músculos das costas tensionando a regata enquanto soltava os parafusos restantes com uma força e uma precisão que eram quase hipnóticas.
Não era só força bruta, que ele tinha de sobra, era eficiência pura, nascida de anos manuseando ferramentas e pesos. A roda velha saiu, a nova entrou.
Ele apertou os parafusos num ritmo rápido, metódico. Cruzado, sussurrou, como se lembrasse das regras básicas. Mal cinco minutos se passaram.
— Pronto!
ele anunciou, abaixando o carro com o macaco e dando um último aperto nos parafusos com o pé. Levantou-se, limpando as mãos numa flanela que tirou do bolso de trás.
— Tá zerado.
— Muito obrigada mesmo
agradeci, sentido o calor subir ao rosto de novo. Pela ajuda, pela surpresa, pelo jeito que ele me olhava.
— Foi... muito rápido.
— Adrian Bennet
ele disse, estendendo a mão limpa agora. Um gesto formal, quase deslocado no cenário noturno, sob o poste de luz. Os olhos dele me prenderam, curiosos, tentando decifrar algo.
— Prazer em te conhecer. O Walter não exagerou.
Estiquei minha mão, sentindo a diferença brutal no tamanho, na textura áspera da dele contra minha pele. O aperto foi firme, mas cuidadoso.
— O prazer é meu, Adrian. Realmente. Agradeço de novo pela...
Card'B tocou na minha mochila insistente, cortando o ar. Adrian soltou minha mão. Eu pesquei o aparelho. Vovô. De novo. Atendi rápido.
— Vô? Tudo bem?
— Corujinha?
a voz dele soava mais cansada, um fio de tensão nela.
— Desculpa ligar pra você de novo, filha. Mas essa dor de cabeça do capeta não passa. Acha que dá pra passar na farmácia 24h do centro e pegar aquele remédio pra mim? O de sempre. Só se estiver no seu caminho, se já estiver chegando. Deixa pra lá...
Olhei para Adrian, que observava, impassível, mas atento para o carro
— Claro, vô! Tô saindo da academia agora mesmo, passo lá. Cinco minutos. Já eu chego. Fica deitado.
— Obrigado, princesa. Cuidado na rua.
— Cuidado você. Já tô indo.
Desliguei, sentindo a urgência apertar. Adrian já tinha captado a situação.
— Tudo bem com o Walter?
— Dor de cabeça forte. Preciso pegar o remédio dele na farmácia 24h.
Joguei a mochila no banco do passageiro.
— Desculpa, tenho que ir correndo. E... obrigada de novo. De verdade.
Ele deu um passo para trás, abrindo espaço.
— Nada que agradecer. Vai com cuidado. E manda um abraço pro velho. Diz que o Adrian perguntou dele.
— Digo sim. Boa noite!
Entrei no carro, dei partida. O motor roncou saudável. Olhei pelo retrovisor. Adrian ainda estava ali, parado sob a luz do poste, uma figura grande e silhueta contra a porta iluminada da academia, observando eu me afastar. Acenei brevemente antes de virar o carro. Ele ergueu a mão num gesto de despedida.
Quando olhei novamente no retrovisor, dobrando a esquina, ele já havia virado e estava caminhando de volta para dentro da "Bennet's Iron & Grit".
O nome dele ecoou na minha cabeça junto com o ronco do Camaro. Adrian Bennet. Finalmente tinha um rosto e um par de braços fortes para o dono da academia onde eu desaparecia nas madrugadas.
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Atualizado até capítulo 57
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