2- Madrugada silenciosa

O óleo de máquina grudava nos meus dedos enquanto eu apertava a última porca do aparelho de remada. O cheiro de ferro e suor velho. A alma do lugar enchia o ar, pesado mesmo com o ar-condicionado roncando no teto.

Oito corpos se moviam pela academia; Henderson suando em bicas na esteira, o rapaz novo na cidade lutando com os halteres, três senhoras, rindo baixo na aula de zumba gravada... Normal. Pacífico. Demais.

Minha mente escorregou pra onde não devia: o assobio cortante do gelo sob os patins, o estalo do disco contra o sticks , o grito da torcida enchendo o estádio. Oito segundos. O tempo que levei pra escorregar naquela porra de fenda invisível, a cabeça seguida pelo ombro batendo no gelo com um estalo que ecoam na minha caveira até hoje. O frio na espinha me cortando por dentro, mais fundo que o cirurgião jamais alcançaria.

— Boo.

O sopro quente no meu pescoço me fez pular, a chave inglesa acabou escapandda mão e caindo no tatame com um baque surdo.

Virei num instinto de luta, o coração batendo na garganta como um prisioneiro.

Raven estava encostada no suporte de halteres, um sorriso lento e perigoso nos lábios.

Vestia apenas leggings pretas e um top esportivo que deixava pouco à imaginação e com um corpo daqueles, imaginação era desperdício.

Curvas fortes, definidas por horas de levantamento de peso e disciplina que eu conhecia bem. A loira dentista da cidade. Gostosa? Pra caralho. E sabia muito bem disso.

— Jesus, Raven. Quase me fez infartar. 

Peguei a chave inglesa, limpando o óleo na calça.

— Que diabos faz aqui depois da meia-noite? Se seu pai descobre, me enfia numa cela por qualquer motivo antes que eu pisque.

Ela deu um passo pra frente, o cheiro doce do seu perfume, algo caro, com notas de jasmim. Invadindo meu espaço, anulando o suor e o óleo.

— Papai tá em Topeka. Conferência de xerifes. Volta só amanhã à noite.

Os dedos dela traçaram uma linha no meu antebraço tatuado, sobre o anjo. A unha vermelha arranhou de leve.

— E a academia tá aberta 24 horas, não tá? Vim malhar... a solidão está me matando.

O olhar dela era um convite aberto. Íamos direto ao ponto. Já tínhamos dançado essa valsa muitas vezes. Sem rodeios, sem café da manhã depois.

Só calor e suor de um tipo diferente. Mas ultimamente... havia um brilho a mais nos olhos dela. Uma expectativa que não combinava com as regras não ditas. Que era sexo quente, forte e gostoso.

Admirei o caminho do suor descendo pelo pescoço dela até o vale entre dos fartos seios dela. Raven era um espetáculo. Gostosa pra caralho.

Mas aquele brilho... era uma cerca de arame farpado.

— Solidão é foda

concordei, a voz mais rouca do que eu queria. Estava ficando de pau duro, e se ela me tocasse seria impossível de parar.

— Mas hoje não rola, Raven.

Ela franziu a testa, o sorriso esfriando um grau.

— Por quê? Tá com outra?

— Tá vendo a Lucy por aqui?

Dei um gesto vago com a cabeça para a recepção vazia. Tentando arrumar uma desculpa.

— Foi ver o guri dela no recital da escola. Disse que ia dormir em casa com o marido e o filho depois. Eu fiquei de guardião do meu reino.

Afastei-me dela, pegando um pano pra limpar o óleo das mãos. O movimento me trouxe de frente para o Henderson, que fingia não espiar no espelho.

— Se eu trancar agora, o velho Henderson tem um treco na esteira e vira notícia. Além do mais...

Encolhi os ombros, encarando-a de frente.

— Não é uma boa ideia.

Raven cruzou os braços, realçando a definição dos bíceps. O olhar dela perdeu o calor, ganhou um gelo afiado.

— Ah, é? E por que não, Adrian? De repente ficou moralista?

Soltei um risco seco.

— Moralista? Nem fodendo. Só prático. Seu pai volta amanhã. E você...

Hesitei, escolhendo as palavras como se fossem minas.

— Você tá começando a querer coisas que eu não tenho pra dar, Raven. Café da manhã. Conversinha. Talvez um jantar no sábado.

Balancei a cabeça.

— Não sou feito pra isso. E você merece mais que migalhas de um cara que troca o dia pela noite num bar de sinuca ou consertando máquina quebrada.

Ela ficou imóvel por um segundo. O silêncio só tinha o ronco da esteira do Henderson e o som da música que as mulheres estavam dançando. Até que ela soltou um riso curto, sem humor.

— Migalhas?

O olhar dela varreu meu rosto, minha cicatriz na nuca que devia estar vermelha, minhas roupas sujas de óleo.

— Achava que você era mais esperto que isso, Bennet. Ou mais corajoso.

Virou-se, pegando a bolsa que deixara no chão. E tive o vislumbre da sua bunda redonda.

— Não se preocupe em me foder, ou com café da manhã. Nem com o jantar. Nem com nada.

Raven saiu sem olhar para trás, o cheiro doce do seu perfume deixando um rastro amargo no ar. A porta de vidro deslizou e se fechou com um clique definitivo.

Henderson desligou a esteira, ofegante.

— Tudo bem, Adrian?

perguntou, com aquela voz trêmula de quem já viu muita merda na vida.

Esfreguei a nuca. A cicatriz latejava, um eco distante do gelo. Olhei para o aparelho que consertara, para as máquinas silenciosas esperando o próximo maluco, para o vazio onde Raven estivera.

— Tudo ótimo, Henderson

menti, pegando o pano sujo de óleo novamente.

— Só mais uma noite no paraíso. Volta pra tua esteira, velho. Ainda faltam cinco minutos.

O ronco da esteira do Henderson mal recomeçou e já disfarçava o silêncio pesado que a Raven deixou pra trás.

Ainda sentia o cheiro doce do perfume dela, uma facada de jasmim no ar carregado de óleo e suor.

Esfreguei a nuca, onde a cicatriz latejava,  com certeza ia chover.

Só mais uma noite no paraíso.

Pensei, sarcástico. O paraíso cheirava a pneu queimado e desilusão.

Foi nesse instante que o som suave da porta deslizante cortou o ar.

Meu corpo reagiu antes do cérebro. Espinha travada, punho cerrando o pano engordurado. Ela voltou. A estúpida sensação de culpa, rápida disparou no peito, seguida de perto pela tensão.

Virei num movimento brusco, quase militar, o rosto já armado pra outra rodada de facadas verbais.

Não era a Raven.

Parada na entrada, iluminada pela luz fria do corredor, estava uma morena que eu nunca tinha visto.

Pelo menos, nunca reparado, o que eu acho que seria impossível. Ela deu um pequeno salto pra trás, os olhos cor de avelã grandes, expressivos, arregalados de susto.

Uma mão fina voou instintivamente ao peito, sobre um top esportivo simples, cor de vinho.

— Nossa!

a voz dela saiu um pouco mais alta que o normal, um sopro de surpresa.

— Você me assustou!

O sangue correu quente pra minha orelha. Idiota, Bennet.

Baixei a guarda na hora, relaxando os ombros, tentando parecer menos um ex-jogador de hóquei prestes a atacar e mais um... dono de academia? Funcionário? O que quer que eu fosse naquela noite.

— Perdão. Sinceramente

levantei as mãos, ainda sujas, num gesto pacífico. O pano pendia ridiculamente de uma delas.

— Não esperava ninguém nessa hora. Tudo bem?

Ela respirou fundo, a franja não escondia o formato de coração de seu rosto, os fios de seu cabelo castanho escuro escapavam do rabo de cavalo baixo e equanto ela passava a mão, claramente nervosa. Boa Bennet, ótima primeira impressão.

Um rosto que devia ter uns vinte e poucos, no máximo. Esguia, mas não parecia frágil. Delicada nas feições, mas com uma postura firme. Não chegava a 1,70, mas preenchia o espaço com uma presença inquieta.

— Tudo, tudo.

disse, recuperando o fôlego. Olhou em volta, os olhos amendoados e claros passando pelo Henderson que fingia hipnotizar o painel da esteira, pelas senhoras do zumba que agora cochichavam olhando pra ela, e voltando pra mim.

— Eu... vim malhar. O lugar está aberto, não está?

— 24 horas, certo como o sol nasce pra atormentar quem tá de ressaca

concordei, tentando um sorriso que provavelmente saiu mais torto que sincero.

— Precisa de alguma coisa?

Ela hesitou por um segundo, os lábios carnudos, sem resquício de maquiagem. Um rosto naturalmente bonito. Parecia estar revirando algo na cabeça enquanto mordia o canto da boca. E que boca linda e convidativa.

— Na verdade, a Lucy. Ou o Jack? Eles não estão...?

Ah. Claro. Os frequentadores da noite costumava lidar com a Lucy ou o Jack.

— Lucy foi no recital do filho. Jack... bem, Jack deve tá apagado em algum canto depois do turno da manhã

expliquei, encostando no banco do aparelho de remada que eu terminei de consertar. O óleo grudava na minha calça.

— Tô cobrindo a fortaleza hoje. Adrian Bennet.

Estiquei a mão automaticamente, mas puxei pra trás ao ver a graxa nos meus dedos. Bela primeira impressão, campeão.

— Ah, entendi...

ela murmurou, um alívio sútil passando pelo rosto. Não parecia desapontada, só confirmando minha informação.

— Tudo bem então. Eu sei o caminho.

Ela me deu um aceno breve, educado, e se dirigiu com passos leves e silenciosos, até a caixa de plástico branco encostada na parede perto da recepção.

A caixa das fichas.

Abriu a tampa, os dedos ágeis vasculhando as pastas de plástico coloridas até encontrar a dela. Uma das verdes.

Tirou a ficha, fechou a caixa com cuidado e, sem olhar pra trás, caminhou direto para a área dos aparelhos de resistência, sumindo atrás de uma fileira de elípticos.

Fiquei ali parado, com o pano de óleo esquecido na mão. O ar-condicionado soprava. Henderson bufava. As senhoras riam baixinho.

Quem diabos era aquela moça?

Dois meses. A placa na porta dizia Bennet's Iron & Grit. Eu estava lá todo santo dia consertando, limpando, fazendo inventário, às vezes até batendo um papo com os frequentadores.

Como é que uma morena daquelas, com olhos que pareciam pegar a luz fraca da academia e devolver em tons de mel e floresta, passou despercebida por dois meses?

Ela era… diferente. Não no sentido óbvio da Raven, que entrava numa sala e exigia que todo mundo olhasse, com aquele corpo esculpido e a atitude de quem sabe o poder que tem.

Essa aqui era mais… sútil. Esguia, sim, mas com a sugestão de certa força nos ombros estreitos, a cintura fina e definida embaixo das leggings pretas.

Delicada nos movimentos, mas não hesitante. Havia uma quietude nela, uma serenidade que contrastava brutalmente com o caos metálico e suado do lugar. E aqueles lábios… Jesus.

Meu olhar seguiu o caminho que ela tinha feito até os aparelhos. Não conseguia vê-la, mas sabia que estava ali. Uma pergunta martelou na minha cabeça, mais insistente que a dor na nuca:

Qual é o nome naquela ficha verde?

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Comments

Luiza

Luiza

Uauu

2025-07-14

0

Família Soares

Família Soares

todos lindos!

2025-06-26

2

Ver todos
Capítulos
1 1- Oito segundos
2 2- Madrugada silenciosa
3 3- Camaro velho
4 4- Toyota amarelo
5 5- Aula de balé
6 6- Cumprindo promessas
7 7- Teatro municipal
8 8- A apresentação de balé
9 9- Dança contemporânea
10 10- Distraído
11 11- Oficina
12 12- Inferno de fogo
13 13- Sobre rodas
14 14- Luz da varanda
15 15- Lista de compras
16 16- Promessa de guerra
17 17- Hospitalidade
18 18- Quente como um vulcão
19 19- Armadilha
20 20- Prova de resistência
21 21- Um passo pra trás
22 22- Feira de primavera
23 23- Sanduíche de costela
24 24- A primeira mordida
25 25- Show de country
26 26- Raiva e fogo
27 27- Momento de clareza
28 28- Entendeu tudo errado
29 29- Planos para o sábado
30 30- Prontos pra carnificina
31 31- Submundo
32 32- Demolidor
33 33- Medo congelante
34 34- verdade crua
35 35- Choque das revelações
36 36- De homem pra homem
37 37- Almoço surpresa
38 38- Festa dos Fire Angels
39 39- Nova realidade
40 40- Condenado
41 41- Volta de moto (+18)
42 42- Atraída pelo abismo - Dança contemporânea
43 43- Negócios, são só negócios
44 44- Afunda ou deixa entrar?
45 45- Brava (+18)
46 46- Aquário
47 47- Uma busca implacável está começando
48 48- Fúria corporal
49 49- O peso das palavras não ditas
50 50- O inferno não chegou, ele já está aqui!
51 51- Rompendo barreiras
52 52 - Quente como um vulcão (+18)
53 53- Meu Caçador
54 54- Planos de guerra
55 55- Priminhos
56 56 - Jantar e convidados inesperados
57 57- Cilada
Capítulos

Atualizado até capítulo 57

1
1- Oito segundos
2
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3- Camaro velho
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4- Toyota amarelo
5
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