5

A luz da lua atravessava o vidro do meu escritório, desenhando um rastro prateado sobre o chão de madeira, onde se acumulavam garrafas vazias de whisky. Eu nem lembrava quantas tinha bebido. Nem fazia diferença.

Encostei a testa no vidro gelado da janela. Os olhos fixos na escuridão do campo à frente da mansão. Era tudo que me restava: escuridão. Os papéis espalhados, as rotas destruídas, os nomes dos homens mortos. A impotência de ver minha mãe internada de novo. Os gritos dela ecoando dentro da minha cabeça. Pedindo pela filha. Exigindo que lhe devolvessem a bebê que o mundo lhe roubou.

Alice.

Fechei os olhos.

Porra.

Meu punho se fechou com força.

O ranger suave da porta abrindo atrás de mim foi o primeiro sinal.

Passos lentos. Determinados.

Eu conhecia aquele som.

Não me virei.

Continuei encarando a noite lá fora, o copo firme na mão, o gelo já derretido, o whisky mais aguado que minha esperança.

Então senti a mão firme se aproximar. Ele pegou o copo sem dizer nada e o pousou sobre a mesa.

— Precisa de ajuda?

A voz de Antony era baixa, grave, mas carregava uma firmeza que me atravessava como uma lâmina. Meu pai. O único homem que eu nunca consegui enganar.

Não respondi.

Não tinha forças.

Ele me puxou para um abraço.

E eu não recuei.

Não foi um abraço frágil ou afetado. Foi firme. Silencioso. Dois homens em guerra com o mundo e, por um instante, em paz um com o outro.

Meus braços estavam pesados. Mas o abracei também. Sem chorar. Sem desabar. O peito estava esmagado, o coração pulsava devagar, mas estar ali, entre os braços dele... me dava a sensação de que ainda não estava tudo perdido.

Passaram-se alguns minutos até que eu me afastasse. Caminhei até a mesa, respirei fundo e recolhi um dos relatórios.

— Sente-se. — apontei para minha poltrona.

Ele me olhou, surpreso.

Não era um pedido.

Era um comando.

Mas não como os que ele costumava dar.

Era um gesto silencioso de quem estava entregando o bastão.

Era a minha forma de dizer: “Eu preciso de você.”

Antony se sentou.

Com a mesma postura ereta de sempre. A expressão dele se manteve firme, mas havia algo diferente nos olhos. Algo orgulhoso.

Aproximei-me, deixei os relatórios diante dele e puxei a cadeira ao lado. Não me sentei em sua frente. Me coloquei ao seu lado. Como quando eu era criança e me encostava na poltrona só para ver o que ele fazia.

Observei enquanto ele folheava os papéis. A análise tática, os ataques, as fotos, os relatórios dos homens que perdemos. A precisão dele ainda era absurda. Mesmo sem estar envolvido diretamente nos últimos meses, ele lia tudo com o olhar de quem já sobreviveu a muitas guerras.

— Você fez um bom trabalho, Marco. — ele disse, após alguns minutos em silêncio. — Está sendo meticuloso. Racional. Frio.

— Mas não está funcionando. — completei. — Não conseguimos rastrear. Não conseguimos prever. Ele nos ataca por todos os lados, mas nunca se mostra.

— Então precisamos fazer ele se mostrar. — ele afirmou, como se fosse simples.

E talvez fosse.

Com meu pai, as coisas sempre pareciam mais possíveis.

Me peguei sorrindo.

Um sorriso pequeno. Cansado.

Mas real.

A verdade é que eu sempre tive ele como meu herói.

Mesmo com sua rigidez. Mesmo com os silêncios. Antony nunca deixou de ser presente. Ele cuidava. Me recompensava quando eu vencia. Me treinava quando eu falhava. Nunca me cobrou ser perfeito, mas me ensinou a ser letal.

O mundo via em mim o filho frio de um chefe de máfia. O braço direito da morte.

Mas aqui... dentro dessas paredes... eu era apenas o filho de Piettra e Antony Rizzo.

E aquilo... era minha base.

Meu alicerce.

A única coisa que ainda me mantinha inteiro.

Protegê-los... proteger minha família... era o que importava. A qualquer custo.

Mesmo que isso custasse minha alma.

Olhei para ele mais uma vez. Sentado na minha cadeira, em meu lugar.

E percebi que, apesar de tudo o que já conquistei, ainda sou aquele menino que só queria ser digno do próprio pai.

E hoje, por um instante, eu precisava que fosse ele o líder.

Porque o peso de comandar, sozinho, estava me matando por dentro.

Mas eu não caí.

Ainda não.

E não vou cair.

Porque minha guerra só está começando.

E ao lado dele... eu nunca estarei sozinho.

O silêncio era denso no escritório. Eu ainda encarava os mapas, os rastros do caos que alguém vinha espalhando nas sombras. O ar estava denso, carregado de frustração e raiva. Antony continuava sentado na poltrona, o olhar atento sobre cada detalhe que eu havia anotado.

— Tem uma coisa que podemos tentar — ele disse, com a calma de quem estava segurando uma granada sem o pino.

Ergui os olhos devagar.

— Não gosto do seu tom, pai.

Ele soltou um suspiro pesado e se inclinou na poltrona.

— Está na hora de conversar com Giovanni.

A raiva me subiu como um fogo rasgando minhas veias. Me afastei da mesa e caminhei até a janela novamente, passando a mão pelos cabelos.

— Não. — respondi firme.

— Marco...

— Eu disse que não! — girei nos calcanhares, a voz mais alta do que deveria. — Aquele velho tem assistido tudo de camarote! Todas as famílias estão sangrando, homens estão morrendo, rotas sendo invadidas, mulheres e crianças chorando, e ele não faz porra nenhuma!

— Cuidado com o que fala — Antony advertiu, a voz baixa, mas firme como uma sentença.

— Não, pai. Dessa vez não vou me calar. Giovanni Denaro é o soberano, o grande Don, o homem que todos se ajoelham pra servir. Mas onde está ele agora? Quando a merda está transbordando, onde está o velho que prometeu manter todos sob proteção?

— Ele está lutando à própria maneira — meu pai rebateu, se levantando com a tranquilidade de quem conhecia verdades que eu ainda não tocava.

— Isso é desculpa. Ele tem poder, tem homens, tem influência. Mas permanece em silêncio.

— Porque o inimigo que enfrentamos, Marco, é maior do que você imagina.

— E justamente por isso... — avancei um passo — ...ele deveria agir.

Antony me olhou com olhos duros, mas não havia raiva, apenas peso.

— Ir até Giovanni não é um sinal de fraqueza, filho. É reconhecer e ser reconhecido como aquele que sabe escolher seus elos fortes. Ele não liderou esse mundo por tanto tempo à toa. Há razões para os silêncios dele. Estratégia. Sobrevivência. E se você quer proteger essa família como diz, precisa engolir o orgulho e entender o jogo que está sendo jogado.

Respirei fundo, controlando a fúria que queria me engolir.

— E o neto dele? — disparei, cruzando os braços. — Hein, pai? O que ele fez com o próprio sangue?

Antony desviou o olhar por um segundo, como se já esperasse por aquilo.

— Allan.

— É. Allan. — continuei. — Giovanni o rejeitou antes mesmo de nascer. Mandou embora a filha como se fosse lixo. A mulher era sua única filha, e ele simplesmente... deserdou. Enterrou viva. E agora? Vai fingir que aquele império que Allan construiu não existe? Vai ignorar que ele é um Monett por fora, mas carrega o sangue Denaro por dentro?

Meu pai se sentou novamente, dessa vez mais lento.

— Você sabe que a história da mãe de Allan foi um divisor de águas pra Giovanni. Ele amava aquela filha mais do que qualquer coisa, Marco. Mas ela desafiou tudo o que ele acreditava. Se apaixonou e se deitou com um homem fora da máfia. Quando ele descobriu... o orgulho falou mais alto que o amor. E ele a mandou embora.

— Como se fosse uma traidora.

— Como se fosse um erro — completou meu pai. — E passou quarenta anos fingindo que ela nunca existiu. Você sabe disso.

Eu sabia.

A filha viva que ele tratou como morta. O neto ignorado. Uma linha de sangue escondida do mundo.

— E agora ele espera que a gente o procure? Que continue ajoelhando e fingindo que nada disso importa?

— Allan cresceu longe da máfia, construiu sua fortuna com trabalho legal, longe de tudo o que Giovanni representa. — Meu pai me fitou — Talvez... exatamente como o velho queria. Talvez essa tenha sido sua forma de protegê-lo. Talvez tenha aprendido com a dor de perder a filha.

Me calei.

Era difícil processar tudo.

Porque, no fundo, parte de mim também queria entender.

Entender por que Giovanni nunca fez nada por Allan. E, ainda assim, agora parece depender dele mais do que nunca.

— Até onde você acha que Allan sabe? — Meu pai questionou, voltando para a cadeira. — Ele já demonstrou alguma coisa?

— Ele conhece parte da história. Mas ainda não sabe da ligação completa. Não do peso que carrega. Não da ameaça que se aproxima.

Me apoiei nos cotovelos, os olhos baixos.

— Giovanni vai ceder? Vai aceitar Allan como herdeiro se o inferno estourar?

— Vai ter que aceitar. — meu pai respondeu com convicção. — Porque agora não se trata mais de orgulho. Se trata de sobrevivência. Allan é o elo que o inimigo não vê. É a carta que Giovanni manteve escondida por décadas. E talvez seja a única que ainda possa salvá-lo.

Fiquei em silêncio.

O velho Denaro ainda ditava as regras.

Mas pela primeira vez... talvez fosse ele quem estivesse prestes a ser derrubado.

E o que ninguém sabia... é que eu estava pronto pra mover o tabuleiro inteiro.

Nem por ele.

Nem pelo legado.

Mas pelo que é meu.

Pelo que eu jurei proteger.

Minha mãe.

Minha família.

E agora, talvez... até mesmo Allan.

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