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A sala de reuniões ficava nos fundos de um dos prédios mais antigos de Verona. As paredes eram de pedra, grossas o suficiente para abafarem qualquer som, e os vitrais fechados impediam qualquer visibilidade de fora. Ali não havia lugar para erros, nem para suposições ingênuas. Só se sentava naquela mesa quem tinha sangue nas mãos e peso no nome.

Eu cheguei por último. Era proposital. Os outros gostavam de jogar charme com suas entradas dramáticas, seguranças espalhados, olhares desconfiados. Eu preferia observar. E chegar depois me dava exatamente essa vantagem. Quando empurrei a pesada porta de madeira, todos já estavam em seus lugares — rostos velhos, marcados por guerras que moldaram o submundo italiano. Todos, menos Don Giovanni, que há meses estava recluso.

— Finalmente, Marco Rizzo decide nos agraciar com sua presença — ironizou Salvatore Mancini, líder da máfia napolitana, ajeitando os anéis nos dedos gordos.

— Não sou eu quem está atrasado, Mancini. É você que está adiantado demais para um homem que perdeu metade dos seus navios esse mês. — Sentei sem tirar o sobretudo, o olhar firme percorrendo cada rosto naquela mesa.

Alex ficou de pé atrás de mim. Era meu braço direito, meu escudo e minha última palavra antes de um disparo. Se ele estava ali, sabiam que eu não estava para cerimônia.

— Vamos começar — disse Arturo Bellini, o mais velho do grupo, com voz grave. — Nos últimos três meses, sete rotas foram comprometidas. França. Bélgica. Grécia. E agora, Itália.

— Vocês estão começando a perceber tarde demais — falei, recostando na cadeira. — Desde que nossas fronteiras foram invadidas, era óbvio que havia um nome por trás disso tudo. Mas preferiram achar que eram ações isoladas.

— E você sabe quem é o maldito responsável? — rosnou Nicolò Vitale, chefe de Palermo.

— Não. Ainda não. Mas estou atrás. Quem quer que seja, é inteligente o bastante para não deixar rastros e cruel o suficiente para queimar cargas completas só para nos atingir.

Silêncio.

A tensão na sala era um fio esticado. Todos sabiam que perder homens era aceitável, perder cargas era parte do jogo. Mas perder rotas... perder território... isso era guerra.

— A família Moretti teve dois armazéns queimados ontem à noite — relatou Arturo. — E segundo nosso informante, os invasores usavam táticas militares. Profissionais.

— Não são policiais. Não são gangues rivais. São homens treinados. Com uma missão — completei.

— Que tipo de missão? — perguntou um dos capos menores, novo na mesa.

— Colapsar o sistema — respondi, simples. — E quando isso acontecer, só vai restar espaço para um nome.

As palavras pesaram. Ninguém falou, mas todos entenderam. Aquilo não era apenas um ataque. Era uma limpeza. Uma tomada de poder. Alguém queria ser o novo Don. E para isso, precisaria destruir todos os impérios já existentes.

— Vocês acham que é algum traidor? — perguntou Mancini.

— Não — respondi. — Meus homens são leais. E acredito que os seus também. Isso não parte de dentro. Parte de cima.

— De cima? — Bellini arqueou uma sobrancelha.

— Alguém que enxerga o todo. Que tem aliados em todos os países. Que se esconde enquanto nos faz sangrar aos poucos.

Falei o que todos temiam pensar. Mas era necessário.

— Se quisermos sobreviver, vamos precisar fazer algo que não fazemos há décadas — continuei.

— O quê? — Nicolò questionou.

— Trabalhar juntos.

Um murmúrio percorreu a mesa. Homens acostumados a matar uns aos outros agora precisariam selar acordos. A sobrevivência exigia sacrifícios.

— Proponho que compartilhemos informações. Que cada ataque seja analisado em conjunto. E que, se necessário, combatamos esse inimigo como uma força só. Antes que sejamos derrubados um a um.

Todos se olharam. Alguns hesitantes. Outros apenas silenciosos.

— Concordo — disse Arturo. — Pela primeira vez em cinquenta anos... acho que não temos outra escolha.

— Que seja então — completou Mancini, encarando-me. — Mas se você estiver blefando, Rizzo, e isso for parte de algum plano teu...

— Me mate. — Olhei fixo. — Vai ser sua única chance.

A reunião seguiu com trocas de dados, rotas, nomes de homens caídos e possíveis padrões. Mas tudo ainda era nevoa. O inimigo continuava sem nome. Sem rosto. Um fantasma que andava entre as sombras.

Na saída, Bellini se aproximou de mim, com seu andar lento de velho guerreiro.

— Você já viu isso antes, não é?

— Não. — Respondi. — Mas conheço o tipo de homem que faria isso.

— E que tipo é esse?

— O tipo que espera no escuro até todos nós acendermos nossas próprias fogueiras. E aí, sopra o vento.

Bellini assentiu, com um pesar nos olhos.

— Cuide-se, Marco. Você é o mais novo aqui, mas também é o mais perigoso.

Sorri de canto, girando a chave do carro entre os dedos.

— E é por isso que serei o último a cair.

......................

Meu escritório parecia uma trincheira.

Papéis cobriam a mesa, o chão, os móveis. A luz do abajur refletia o brilho metálico da minha Glock apoiada ao lado do telefone, e o único som no ambiente era o zumbido contínuo do projetor que iluminava o grande mapa preso à parede. Era quase artístico, se não fosse uma maldita obra de guerra. Tinta vermelha marcava os últimos pontos atacados. Azul para as rotas ativas. Verde para os galpões seguros. E os pretos... os que já estavam perdidos.

Fiquei encarando aquele mapa por tanto tempo que senti os olhos arderem. As rotas destruídas cruzavam o país como feridas abertas. Cargas perdidas. Homens mortos. E nenhuma porra de pista sequer.

Nenhuma.

Apoiando as mãos na mesa, respirei fundo. Minha mãe estava internada outra vez. Mais uma crise. Mais um colapso emocional que nenhum médico conseguia diagnosticar. Eles chamam de surto psicogênico. Eu chamo de saudade crônica. Um luto que nunca aceitou.

Alice.

Sussurrei o nome da minha irmã, e minhas mãos cerraram os punhos. O retrato dela estava na estante, o único que restou. Eu, com oito anos, segurando um bebê enrolado num cobertor rosa. O dia da foto foi o último em que toquei minha irmã. No dia seguinte, tudo explodiu. Carro, fogo, caos.

Minha mãe gritava até hoje por aquela criança.

E eu?

Eu gritava por dentro. E matava em silêncio.

A campainha do telefone quebrou o transe. Toquei o aparelho, atendendo com um rosnado seco:

— Rizzo.

— Senhor... — Era Alex. A voz dele estava pesada. — Tivemos mais um ataque.

Fechei os olhos e contei até três, tentando evitar quebrar outro copo ou rasgar outro relatório.

— Onde?

— Saída norte de Caserta. Três caminhões. Todos destruídos. Não sobrou nada. Homens mortos. Bons homens, senhor. Soldados fiéis. Todos tinham família. Mulheres e crianças... choram inconsoláveis.

Fechei os olhos, trincando os dentes. Um silêncio cortante caiu entre nós. Por fim, soltei o ar entre os dentes:

— Maldito.

Num acesso de fúria, varri a mesa com o braço. Relatórios voaram, copos quebraram. O som abafado do vidro ecoou pela sala, mas nada me dava alívio. Caminhei até a estante e encarei o quadro. Alice. Tão pequena, tão inocente.

— Eu falhei com você... — murmurei. — Eu era só um moleque, mas devia ter feito algo. Eu devia...

Bati com força no móvel. Uma rachadura surgiu no vidro do porta-retrato, como se o próprio tempo também não aguentasse mais carregar essa memória.

Deslizei de volta para a mesa e peguei o celular. Digitei o protocolo de reforço e enviei para todos os chefes de segurança responsáveis por Piettra. Ela era a minha fraqueza. Sabiam disso. E agora, ela era um alvo fácil. Debilitada. Vulnerável.

Se alguém ousasse tocar um fio de cabelo daquela mulher, eu faria questão de arrancar o coração do filho da puta com as próprias mãos. Sem anestesia. Sem misericórdia.

Toquei um ponto no mapa. Caserta. Quatro ataques em dois meses. Mas não havia padrão. O inimigo atacava no sul, depois no norte, depois em rotas menores. Destruía, matava, desaparecia. Não exigia nada. Não deixava bilhete. Não mandava ameaça.

Era como lutar com um fantasma. Um inimigo invisível, que sangrava meu império sem jamais mostrar o rosto.

Mas eu ia encontrá-lo.

Mesmo que tivesse que cavar o inferno com as mãos.

O telefone apitou novamente. Alex tinha enviado imagens. Caminhões carbonizados. Corpos irreconhecíveis. Um deles ainda segurava a corrente com a imagem de São Miguel. Lembro que foi presente da filha no último Natal.

— Me encontre na base às 20h — escrevi para Alex. — Vamos revisar cada ponto. Cada rota. E rastrear esses desgraçados.

Antes de desligar, acrescentei:

— E Alex... não deixem que toquem em minha mãe. Não importa o que custe.

Encerrada a ligação, deixei o celular de lado e caminhei pelo escritório como um animal enjaulado. A dor queimava no peito. A raiva fervia nas veias. Mas era a impotência que mais me matava.

Eles tinham medo de mim. Do meu nome. Do meu histórico. Marco Rizzo. Herdeiro da máfia mais poderosa do sul da Itália. Treinado para matar, para negociar, para destruir. O homem que muitos chamavam de demônio.

Mas nem o diabo vence fantasmas.

E era isso que enfrentávamos.

Um fantasma.

Mas eu ia descobri-lo. Com sangue, com suor, com sacrifício. Ia arrancar sua identidade, desmembrar seu império e espalhar suas cinzas pelo Mediterrâneo.

Porque aqui, quem manda sou eu.

E ninguém fode com a minha família.

Ninguém.

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