Reflexos do passado

## 🌒 Capítulo 3 – Reflexos do Passado

Era estranho como, em poucos dias, minha vida havia se transformado.

Antes, tudo que eu conhecia era o calor da minha casa, o cheiro da terra molhada depois da chuva, as conversas na feira da vila. Agora, acordava com os sons da floresta me chamando e dormia com lembranças que pareciam não ser inteiramente minhas.

Bryan me esperava na clareira como de costume. Mas aquele dia estava diferente. O céu parecia mais cinzento, as árvores mais silenciosas. A brisa que antes dançava com as folhas agora cortava como navalha.

— Bom dia — falei, tentando quebrar o clima.

Ele apenas assentiu com a cabeça, os olhos presos no céu.

— Você sente isso? — perguntei.

— O ar... está tenso. Há algo se movendo entre os planos. Provavelmente, sentem sua presença agora. Sua luz.

Sentei sobre uma pedra coberta de musgo, observando-o. Havia algo nele que me fascinava, além do óbvio mistério.

Era a maneira como ele parecia carregar uma culpa silenciosa, como se sua alma estivesse rachada e tentasse esconder isso de mim.

— Você sempre fala de luz e sombra... como se fossem pessoas. Mas são mesmo? Ou é só forma de falar?

Bryan caminhou até mim, sentando-se ao meu lado. Seu olhar estava distante.

— Não são pessoas. Mas também não são só conceitos. A luz e a sombra são forças vivas, Mary. Elas têm vontade, impulso. E, acima de tudo, têm memória.

— Memória?

— A luz lembra. A sombra... nunca esquece.

Arrepios percorreram minha pele.

— Então... quando uso a luz, estou acessando algo que já foi?

— Não apenas o que foi — ele disse, encarando minhas mãos —, mas o que poderia ter sido. A luz mostra caminhos. Possibilidades. Mas também te cobra por cada escolha.

Aquilo me atingiu com força. Como se cada vez que eu despertava a luz, eu estivesse tocando um mundo de futuros ainda não vividos — e talvez, pagando por isso.

— Você fala com tanta certeza... como se já tivesse escolhido errado antes.

Ele fechou os olhos.

— Porque escolhi.

Um silêncio pesado se instalou entre nós.

— Eu posso te perguntar uma coisa? — arrisquei.

Ele assentiu, sem me olhar.

— Você já amou alguém?

Dessa vez, ele demorou para responder. O vento parecia ter parado, o tempo hesitava.

— Sim. — Sua voz saiu quase sem som. — Uma vez.

— E ela...?

— Era como você.

Fiquei em silêncio. Não sabia se me sentia honrada ou assustada com a comparação.

— O que aconteceu com ela?

— Ela morreu. Por minha causa.

As palavras caíram como pedras no meu peito. Bryan parecia feito de sombra naquele instante. A dor dele era algo físico, vivo, e preenchia o espaço entre nós.

— Você ainda a ama?

Ele virou o rosto em minha direção. Pela primeira vez, seus olhos se abriram completamente para mim. Eram abismos, e dentro deles havia uma tristeza que não combinava com a idade aparente de seu rosto.

— Ainda dói. E talvez sempre doa. Mas...

Ele se aproximou devagar, o rosto a poucos centímetros do meu.

— Há algo diferente em você. Algo que não me deixa fugir.

Meu coração acelerou. Senti o calor subir pelas bochechas.

— Bryan... isso é perigoso.

— Eu sei. Mas não estou aqui por segurança.

Por um instante, o mundo sumiu. Eu só sentia o calor da respiração dele, o cheiro das folhas ao redor, o brilho leve que saía da minha pele quando ele estava perto.

Nos afastamos no segundo seguinte, como se um feitiço tivesse sido quebrado.

— Eu não posso... — ele sussurrou. — Se eu cruzar essa linha, eles virão mais rápido. A Ordem. Malcor. Todos.

— Eu sei — respondi. — Mas não é mais uma linha. É um abismo. E já caímos nele.

Ele me olhou, como se minha resposta o desarmasse.

— Então que venham.

Aquela tarde, treinamos por horas. Bryan me ensinou a ouvir a floresta, a sentir a energia fluindo de dentro da terra e voltar por minhas mãos. Aprendi a moldar luz em pequenos feixes, a criar escudos ao redor do meu corpo.

Cada vez que usava meu dom, sentia uma parte adormecida de mim acordando. Era como se tivesse nascido para aquilo.

Mas o preço vinha logo depois — cansaço, tontura, visão turva.

— É normal — disse ele, me segurando quando quase caí. — Seu corpo ainda está se adaptando. Mas está mais forte do que eu imaginava.

— Isso é bom?

Ele sorriu.

— Isso é assustador.

Antes de irmos embora, ele parou na beira da trilha.

— Mary, eu preciso que você saiba... o que está vindo não será justo. Você vai ser julgada, caçada, traída. Tudo porque ousou carregar luz.

— E você?

— Eu estarei aqui. Até o fim.

Eu assenti.

Mas, no fundo, uma parte de mim sabia: o fim estava se aproximando. E talvez, quando chegasse, nenhum de nós dois estivesse pronto para ele.

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