A Cegueira do Alfa

A noite estava fria, mas Elias mal percebia.

Sentado na beira da cama da mulher que ele jurava ainda amar — ou achava que amava — ele observava a barriga dela se mover suavemente sob a camisola de seda branca.

— Eles se mexeram mais cedo — sussurrou Helena, com um sorriso suave.

Elias forçou um sorriso de volta, tentando se convencer de que estava onde deveria estar. Que havia tomado a decisão certa ao acolher Helena de volta. Ela havia passado por tanto. Fora rejeitada por sua antiga matilha, vagara ferida e desamparada por semanas até que ele a encontrasse novamente — e descobrisse que ela carregava seus filhos.

Aquilo devia significar algo, não?

Ele suspirou, passando a mão pelos cabelos. As coisas com Luna estavam… distantes. Já fazia meses que os dois mal trocavam mais do que frases protocolares. Ela parecia cada vez mais ausente, fria, contida.

Mas ela sempre fora assim, não?

Mesmo no início. Mesmo quando se casaram.

Pelo bem da matilha, ele dizia a si mesmo.

Foi por dever.

Ela o salvara. Curara suas feridas.

E como alfa, ele tinha que retribuir.

Mas... amar?

Ele não sabia se um dia amou Luna de verdade.

Ou talvez... não quis permitir-se amar alguém tão silenciosa.

Tão diferente de Helena.

Helena era fogo, emoção, intensidade.

Luna era calma. Profunda demais. Às vezes, ele se perdia no olhar dela.

— Está tudo bem? — perguntou Helena, tocando sua mão.

Elias piscou, voltando ao presente.

— Só cansado. Reuniões. A matilha anda inquieta.

— Eu imagino — ela respondeu, puxando-o levemente pela camisa. — Fica comigo esta noite?

Ele hesitou. Pensou em dizer que não podia. Que tinha um jantar. Mas lembrou-se tarde demais. Luna deveria estar esperando por ele.

Ele nem avisara que não voltaria.

Mas ela entenderia. Sempre entendia.

Beijou a testa de Helena, murmurando um “fico” quase automático. Deitou-se ao lado dela, tentando ignorar o incômodo que lhe corroía o estômago.

---

Horas depois, no coração da floresta...

Íris farejava o rastro mágico que vinha da casa de Luna. Algo estava errado. Ela sentia.

A energia ao redor da propriedade estava... opaca. A aura da Luna da matilha, normalmente firme, havia se tornado instável.

Quando entrou pela porta dos fundos, encontrou Luna na sala de leitura, com dezenas de folhas espalhadas ao redor.

— Luna? — chamou, apreensiva.

Ela levantou os olhos lentamente. Estava pálida. Havia um brilho seco nos olhos.

— Ele não voltou — disse apenas.

Íris não perguntou de quem falava. Ela sabia.

— E você... está bem?

Luna sorriu, um sorriso quebrado, mas firme.

— Não estou. Mas vou ficar. Estou escrevendo cartas, Íris. Muitas cartas.

A melhor amiga se aproximou, pegando uma das folhas com cuidado.

> “...Não peço que me ame. Só queria que tivesse me enxergado enquanto eu ainda estava viva. Enquanto meu coração ainda batia por você.”

Íris engoliu em seco.

— Você sabe que se continuar assim...

— Sei.

A voz de Luna foi firme.

— A pedra já não brilha, Íris. A ligação foi rompida. Eu só estou aqui por um fio. Literalmente.

Ela tocou o colar em seu pescoço. A pedra mágica — outrora vermelha viva — agora tinha o tom de uma chama prestes a se apagar.

— Você quer que eu entregue as cartas? — Íris perguntou, já sabendo a resposta.

— Uma por semana. Após minha morte. Comece pela mais cruel. Não quero piedade. Quero que ele sinta.

— E se ele...

— Ele não vai sentir nada agora. Mas depois... talvez sinta o que é ser esquecido.

---

Na manhã seguinte, Elias acordou inquieto.

Não conseguia dormir mais.

Havia sonhado com sangue. Com uma floresta vazia. Com uivos de dor que não vinham de lobos comuns.

E no sonho... Luna se despedia dele com um olhar que o destruía por dentro.

Por um instante, sentiu vontade de voltar para casa. De ver se ela estava bem.

Mas então Helena o chamou, e a sensação passou.

Ele ainda não sabia.

Mas a cada dia que não voltava...

Ele perdia um pedaço dela que jamais recuperaria.

E Luna, em silêncio, continuava a escrever.

Luna observava o céu pela janela do quarto. O sol já despontava no horizonte, tingindo as nuvens de um dourado pálido. Mesmo assim, ela se sentia mergulhada na escuridão.

O corpo doía. O coração, mais ainda.

Mas a alma?

Essa já estava começando a se desprender.

Ela tocou a pedra presa ao colar em seu pescoço. O brilho avermelhado agora era quase inexistente. Um espectro de luz que piscava de forma irregular, como um coração que falha aos poucos.

Aquela pedra fora entregue por uma anciã, no dia em que Luna, ainda adolescente, salvara Elias. Naquela época, ele era apenas um jovem lobo, ferido e à beira da morte, cercado por caçadores. Luna o encontrou na floresta e usou o que restava da magia ancestral que corria em sua linhagem para protegê-lo. O feitiço era antigo, proibido.

Um vínculo de alma.

“Você o salvará, mas o preço será o amor,” dissera a anciã.

“Se ele retribuir, viverá por ele.

Se ele quebrar a promessa… morrerá por ele.”

Ela nunca contou a Elias. Nunca exigiu amor. Apenas esperou que um dia ele o entregasse por vontade própria.

Mas ele escolheu outra.

E agora, Luna pagava o preço.

Ao fundo, o som da chaleira interrompeu seus pensamentos. Ela levantou com dificuldade e seguiu até a cozinha, onde Íris preparava chá com ervas restauradoras.

— Conseguiu dormir um pouco? — Íris perguntou, sem se virar.

— Não. Mas dormir já não muda nada.

Íris observou a amiga por alguns segundos. Luna parecia mais magra, os olhos fundos, o rosto pálido. Mesmo assim, havia uma beleza trágica nela. Uma força silenciosa que parecia aumentar, mesmo enquanto sua vida se esvaía.

— Eu preciso te pedir um favor — disse Luna, com voz firme. — Um de verdade.

— Qualquer coisa.

— Quando a última carta for entregue... eu quero que você queime meu vestido de casamento. E leve minhas cinzas para o Rio das Nuvens. Sozinha. Sem cerimônias. Sem covas.

Íris engoliu seco.

— Você ainda pode lutar. Talvez ele...

— Ele não vai voltar, Íris — cortou, com um sorrisinho cansado. — Não por mim. Não enquanto ela estiver aqui. E mesmo que voltasse... já não sou a mesma mulher que ele ignorou por três anos.

Um silêncio carregado tomou conta do ambiente.

Até que Íris respondeu, com os olhos marejados:

— Eu prometo.

E então se abraçaram, como se fosse a última vez.

---

Enquanto isso, Elias voltava para casa pela manhã. O portão se abriu lentamente, e o silêncio no interior da casa o surpreendeu. Estava tudo limpo, arrumado — mas havia um cheiro diferente no ar.

Camomila. Madeira.

E algo mais...

Ausência.

Passou pela sala de jantar e viu a mesa ainda posta — pétalas de rosa ressecadas, uma vela derretida até a base, pratos intocados.

Seu coração falhou por um segundo.

A data.

Ele havia esquecido.

Subiu as escadas rápido, sentindo um incômodo que não sabia explicar.

Encontrou o quarto vazio.

A cama, arrumada.

A escrivaninha coberta de folhas rabiscadas que ele não se atreveu a ler.

Chamou por Luna.

Nenhuma resposta.

Ela estava no jardim, sentada sob a árvore que ela mesma plantara no primeiro ano de casados.

Com o colar escondido sob o suéter, ela fingiu não vê-lo.

— Luna... eu...

Ele parou. Não sabia o que dizer.

Ela se levantou devagar, encarou-o com calma.

E então sorriu — um sorriso triste, calmo, que parecia uma despedida.

— Bom dia, Elias.

— Sobre ontem... eu não consegui voltar. Tive que...

— Eu sei.

Ela o cortou com delicadeza, sem amargura.

— Me desculpa.

— Não precisa.

E, com essas palavras, ela se virou e entrou em casa, deixando-o sozinho no jardim, confuso e incomodado com a sensação de que havia perdido algo precioso — e que talvez fosse tarde demais para perceber.

---

No quarto, Luna sentou-se à escrivaninha mais uma vez.

A mão tremia.

O coração estava fraco.

Mas a caneta ainda escrevia.

> Carta 2

Você se lembra do dia em que me pediu em casamento?

Eu me lembro.

Eu tremia de felicidade, você tremia de obrigação.

Eu me enganei achando que bastaria te amar para ser amada de volta.

Eu achei que bastava salvar a sua vida para que você olhasse para mim com ternura.

Mas você nunca me viu.

Você via uma dívida, não uma parceira.

E agora, mesmo quando morro aos poucos, você só percebe o peso da minha ausência quando encontra um prato frio e uma vela apagada.

Mas tudo bem.

Um dia você vai entender.

Um dia você vai sentir o que eu senti.

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