Capítulo 3 - Sonhos ruins e más memórias

Duas semanas se passaram desde o incidente na cozinha com a minha mãe. Desde aquele dia, ela não tocou mais no assunto - e sempre que eu tentava trazer à tona, ela se esquivava. Contei o que aconteceu para as minhas irmãs, e elas trocaram olhares. Eu conhecia aquele olhar. Era o mesmo de quando estavam prestes a inventar uma mentira.

Elas entendem nossa mãe melhor do que eu mesma. Muitas vezes, eu não entendo Genevieve Lancaster. Mas sempre desconfiei que ela não conta toda a verdade para mim ou para as minhas irmãs, tentando nos poupar de alguma coisa.

Ela nunca falou sobre os nossos avós, ou sobre o lugar onde nasceu, ou como foi a infância dela. Se foi feliz naquela época? Nunca saberei. A única coisa que sei é que ela brigou com os pais. Eles queriam arranjar um casamento pra ela com o filho de um dos grandes amigos do meu avô. Ela protestou. Disse que não queria, que não era isso que sonhava pra vida dela. Mas eles disseram que ela não tinha escolha - decidiram tudo por ela.

Antes do casamento acontecer, ela fugiu.

E nunca olhou para trás.

Dois anos depois, conheceu meu pai.

E, recém-casados, me tiveram.

Até hoje, meus avós não sabem que eu e minhas irmãs existimos. E, pra ser sincera, não me importo. Quem vende a filha como se fosse uma égua bem criada não merece o título de avô.

Não a julgo por fugir.

No lugar dela, eu teria feito o mesmo.

Talvez até pior.

Mas, mesmo depois de vinte anos e nenhum contato, vejo que isso ainda mexe com ela.

Durante essas duas semanas, continuo tendo sonhos horríveis. Como nos últimos três meses, acordo gritando no meio da noite, e só consigo voltar a dormir com ajuda de calmantes.

É um inferno.

Não tenho uma boa noite de sono há meses.

E os pesadelos só pioram quando corro pro banheiro pra vomitar tudo o que comi no jantar.

Agora são sete da manhã de um sábado. Estou sentada no sofá da sala de estar, pensando que, sim, as coisas ainda podem piorar.

Minhas irmãs estão do outro lado da sala, sentadas nas poltronas, tomando chá. Acabaram de voltar da universidade depois das provas finais. Estão em casa pra passar as férias.

- O que vocês têm planejado pras férias? - perguntei, curiosa. Desde o tempo da escola, sempre aprontavam alguma coisa quando ficavam de férias. Isso não mudou com o tempo.

- Não sei... ainda não tenho planos - respondeu Ari, pensativa.

Ari e Maya são gêmeas idênticas. Puxaram mais ao meu pai: cabelos ruivos, pele branca como neve. A única diferença visível entre elas são os olhos - Maya herdou os olhos azuis da mamãe, como o Caribe; já os de Ari são verdes como as montanhas das Highlands, como os do nosso pai.

Mas a personalidade? Completamente opostas.

Maya é reservada, mais na dela. Mas se a Ari chama pra uma festa, ela vai sem pensar duas vezes. No final, as duas acabam voltando pra casa bêbadas e desmaiadas no jardim.

Maya é uma boa pessoa, mas tem o dedo podre pra homem. Todos os caras com quem já namorou são porcos machistas que se acham. Ela já foi traída pelo menos dez vezes. E, sinceramente, nem são lá essas coisas.

Têm o pênis do tamanho do dedo mindinho do pé - nem com uma lupa aquilo melhora.

Ari, por outro lado, é da pá virada. Ignorante, impulsiva, violenta e aventureira. Um espírito livre. Mas se alguém mexer com ela ou decepcioná-la, pode ter certeza de que vai se vingar.

Quando descobriu que o namorado estava traindo, quebrou o carro dele com um taco de beisebol e ainda furou os dois pneus.

Eu ri por dias.

Foi doido e hilário ao mesmo tempo.

O cara com certeza se arrependeu.

Ari tem o temperamento do nosso pai.

Ele nunca foi violento na frente da gente ou da mamãe. Com ela, é carinhoso e atencioso. Mas não gosta de ser desrespeitado. Uma vez, um garçom deu em cima da minha mãe enquanto os dois jantavam. Ela, como sempre, ignorou. Mas meu pai não é do tipo que ignora.

Socou o cara no rosto e quebrou o nariz dele.

Foram expulsos do restaurante naquela noite.

Quando chegaram em casa, perguntei por que a mão dele estava machucada.

Temperamento típico de escocês.

Nunca tinha visto esse lado dele - achei engraçado na época.

- Vocês não têm nenhuma festa do pessoal da faculdade? - perguntei.

- Ninguém falou nada sobre festa. O pessoal está pensando em viajar em vez de fazer alguma coisa - comentou Maya, decepcionada.

Normal. Sempre que o semestre acaba, elas arrumam alguma festa e voltam bêbadas pro jardim ou pra varanda de casa.

- Eu tenho uma ideia! Por que a gente não planeja uma festa de aniversário pra você, Lizzy? - sugeriu Ari, empolgada, com os olhos brilhando.

- Nem pensar. Ficar mais velha já é castigo suficiente - cortei logo o entusiasmo.

- Sério, Lizzy. A gente nunca fez uma festa de aniversário pra você. E sempre que falávamos sobre isso, você ameaçava quebrar minha perna. E fala sério: você não tá velha. Vai fazer 25, não 40. Desencana - disse Maya, tentando me convencer.

- Se inventarem de dar uma festa, vocês vão comemorar sem a aniversariante. Vocês só querem isso agora porque não têm nenhuma festa pra ir e não querem passar as férias entediadas - falei, deixando clara minha opinião.

Nasci no Dia das Bruxas.

Eu sei, irônico.

O famoso Halloween.

Ou, como minha mãe chamava nas histórias do povo celta: Samhain.

Segundo ela, nesse dia o véu entre o mundo dos vivos e dos mortos fica mais fino. É quando podemos nos conectar com os nossos antepassados.

Sempre achei idiota comemorar mais um ano de vida - como se fosse algo bom estar mais perto da morte.

Nunca gostei de festas. Nem de ir às dos outros quando era criança. Só de pensar em fazer uma, me dá vontade de me jogar da janela.

- Bom dia, meninas. O que estão discutindo que já deixou a Lena com raiva de vocês? - perguntou minha mãe, entrando na sala.

- A gente falou que seria legal fazer uma festa de aniversário pra Liz, e ela tá agindo como uma velha rabugenta - respondeu Maya, emburrada.

Elas só querem uma desculpa pra impressionar os amigos bêbados e idiotas delas.

O círculo de amizades das duas é um desastre.

Não é à toa que vivem voltando pra casa fedendo a vodka.

Milagre ainda não terem contraído uma DST.

- ... Acho que seria uma boa ideia. Mas não vou forçar sua irmã a fazer nada que ela não queira. E eu sei muito bem o tipo de festa que vocês querem dar pra ela - comentou Genevieve, encerrando o assunto.

Obrigada, mãe!

Nunca agradeci tanto por uma frase.

- Mãe, sério. Qual é o problema de fazer uma festa aqui em casa? - perguntou Ari, fazendo aquela cara de pidona que eu conheço tão bem.

Ela acha que vai convencer a mamãe como fazia com o papai quando era criança.

Pode tentar à vontade.

Mamãe nunca foi fácil de dobrar.

- Não vai conseguir, Ari. Não vai ser como no baile de formatura - ri, vendo a cara de decepção que ela fez ao olhar pra mim. - Nunca fiz questão de comemorar meu aniversário, nem quando era mais nova. E agora, mais velha, continuo sem querer. Então esqueçam.

- Mas e se a gente só te levar pra sair? Um pub, um jantar? - perguntou Maya, esperançosa.

Jantar soa melhor que uma festa idiota.

Mas... não tô muito a fim.

Ainda assim, deixei o convite em aberto.

- Vou pensar no assunto - disse, virando as costas e indo pra cozinha beber um copo d'água.

- Ok, mas dá a resposta antes, tá bem?! - gritou Maya da sala, animada.

Fui até o armário, peguei um copo de cristal, abri a geladeira, peguei a garrafa de vidro, servi meio copo e bebi.

Depois, subi as escadas, fui direto pro meu quarto e tranquei a porta.

Essas duas são idiotas.

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