Acordei melhor do que na noite passada. Dormi umas sete horas - o que, pra mim, já é milagre. Levantei, tomei banho e fui direto pra maquiagem. Não era só vaidade, era necessidade: esconder as olheiras profundas que mais pareciam tatuagens. Se eu descesse do jeito que acordei, minha mãe ia sacar na hora que eu não estava bem. E lá vinha a enxurrada de perguntas.
Então sim, maquiagem virou armadura. Um pouco de pó, corretivo, lápis e máscara de cílios. Não é o melhor disfarce do mundo, mas já evita uma sessão de interrogatório e aquela preocupação exagerada que ela anda tendo desde que mudamos de cidade.
Ou melhor, de país.
Estamos agora no Reino Unido. Inglaterra. Yorkshire, pra ser mais precisa. Numa casa vitoriana, daquelas que parece cenário de filme antigo. Meus pais compraram quando decidiram, depois de vinte anos rodando o mundo, criar raízes.
Eles se mudaram para Inglaterra enquanto eu estava na faculdade quando tinha 22 anos.
E Ari e Maya tinham acabado de começar a o primeiro semestre na faculdade.
Minha vida inteira foi assim: uma eterna mala feita. Nunca ficamos mais de quatro anos num lugar. Quando eu tinha cinco, veio a bomba: minha mãe grávida de gêmeas. Foi aí que as viagens deram uma diminuída e nos mudamos pra Berlim. Ela já não estava aguentando o ritmo puxado de acompanhar meu pai em cada viagem de trabalho. E claro, ela nunca deixava ele ir sozinho. Levava a mim junto, tipo mascote.
Em Berlim, ficamos cinco anos. Foi quando minha mãe recebeu uma proposta pra dar aula numa universidade. Ela é doutora em mitologia - especialmente a celta. Como boa irlandesa, ela cresceu ouvindo as lendas do próprio povo, passadas geração por geração até chegar nela. Histórias contadas pelos meus avós, sobreviventes de um povo quase varrido do mapa pelos romanos no século I a.C.
Ela conheceu meu pai na universidade. Ele estava se formando, ela no meio do curso. Cinco anos depois, nasci eu. Estão juntos há quase trinta anos e, sinceramente, ainda são um grude. Tão colados que às vezes chega a enjoar.
Desci as escadas e senti o cheiro de café. Aleluia.
Mesmo depois de três anos na Inglaterra, não me acostumei com esse papo de chá inglês. Eu sou do time do café - forte, amargo, preto como a alma de quem inventa aula às oito da manhã.
- Bom dia, mãe - cumprimentei, fingindo naturalidade.
- Bom dia, Lena. Conseguiu dormir? - ela perguntou, já querendo sondar.
- Dormi como uma pedra - respondi rápido, na esperança de encerrar o assunto.
- Sério? Porque tenho notado que você anda diferente - ela continuou, servindo o café.
Ai, mãe, para.
- Não é nada demais, mãe. Ainda estou me acostumando com a cidade - tentei a clássica evasiva.
- É mais do que isso, Lena. Você não está dormindo direito, vive com olheiras - que tenta esconder com maquiagem, mas eu percebo. Tem dores de cabeça constantes, mal come... - disse, com a voz mais tensa do que o normal.
Droga. Sabia que ela ia notar.
- Mãe, eu estou bem. Só não me adaptei ainda, e vamos combinar que passei a vida toda pulando de país em país, como uma cigana. E esse clima aqui... me deprime. E também, nem fome eu ando sentindo - soltei tudo de uma vez.
Era verdade. Desde que viemos pra cá, não me sinto bem. O clima úmido dessa cidade é sufocante. Odeio lugares que vivem chovendo. Sério. Prefiro mil vezes um dia claro de verão, com céu limpo e estrelas à noite.
Me mudei para Londres depois que me formei há três meses.
A comida também é sem graça. Quando como, parece que mastigo carvão. E mesmo comendo, continuo emagrecendo. Três meses aqui e já foram 10 quilos.
- Mas você se adaptou muito bem quando moramos em Berlim - ela rebateu.
- Eu tinha cinco anos, mãe. Criança se adapta a qualquer coisa. E nem lembro direito daquela época.
O que é verdade. Minhas memórias daquele tempo são como fotos borradas. Lembro de deitar com a cabeça no colo dela enquanto ela mexia no meu cabelo, tentando me acalmar. Eu chorava. As gêmeas tinham acabado de nascer, ela não tinha mais tempo pra mim, e meu pai vivia enfiado no escritório.
Fiquei com ciúmes.
Lembro da última coisa que ela disse antes de eu dormir naquela noite:
"Aconteça o que acontecer, você sempre continuará sendo minha filha. Mo ghealach."
Nunca entendi o que significava. Talvez fosse um sonho. Ou um delírio.
- Lena, por favor, não quero discutir. Só estou preocupada - disse minha mãe, agora com os olhos marejados.
Abracei ela forte. Seu cheiro ainda era o mesmo: lavanda e lilases. Calmante. Quase mágico.
- Eu tô bem, mãe. Tenho problemas como qualquer um, mas não são seus pra carregar. Quero resolver sozinha, ok? - falei, sentindo o calor do abraço dela atravessar a blusa de linho.
- Um dia você será mãe, e vai entender - disse ela, com aqueles olhos azul Caribe brilhando.
Ouvi passos pesados. Meu pai.
- Para de chorar, mãe. O papai tá vindo, e você sabe que ele odeia te ver chorando - avisei, limpando as lágrimas dela.
- Bom dia, minha bela - disse ele, aparecendo atrás dela, beijando sua bochecha.
Os dois são mel demais pra minha glicose.
- Bom dia, minha linda - ele veio até mim e me esmagou com um abraço de urso.
- Pai... tá me esmagando. Pode soltar?
- Desculpa, Luna - ele riu, me soltando. Esse apelido veio sabe-se lá de onde, já que meu nome nem é esse.
Minhas irmãs me chamam de Liz, por causa do meu segundo nome: Elizabeth. Homenagem da mamãe à Elizabeth Bennet de Orgulho e Preconceito. Já o primeiro nome, Selene, é grego, e eu nunca perguntei o motivo.
- O que vocês vão fazer hoje? - ele perguntou, casual.
- Vou à cidade comprar umas coisas pro jantar de amanhã - respondeu minha mãe animada.
- Jantar? Desde quando?
- Decidi ontem. Amanhã é nosso aniversário de casamento. Quero comemorar aqui em casa.
Ai, que brega.
- Sério? E um restaurante cinco estrelas, não seria mais prático?
- Jantar fora é clichê demais, Lena - disse ela, toda romântica, com aquele sorriso de quem está em um comercial de margarina.
- Ok. Cadê May e Ari?
- Já foram pra aula - respondeu meu pai. - E eu também estou indo. Beijo nas mulheres da minha vida!
Assim que ele saiu, ela voltou ao assunto. Claro.
- Lena, me diga o que está acontecendo. Você tem pesadelos, eu sei. Não tente negar.
Como ela sabe?
Fugi do olhar dela, fui pra sala e me joguei no sofá. Fiquei encarando o chão de carvalho até ouvir os passos dela atrás de mim.
- Como sabe dos pesadelos?
- Porque eu sou sua mãe. Você grita dormindo, Lena. E eu notei cada vez que ia te ver e você dizia que estava tudo bem com o rosto apavorado.
Ela não vai largar do meu pé enquanto eu não contar.
- Eu sonho que estou caindo do céu no oceano. Quando caio na água, algo me puxa pra baixo. É escuro, não vejo nada. Tento me soltar, nadar, mas não consigo. E sempre afundo mais.
Ela empalideceu. Tipo, instantaneamente.
- Mãe? Que foi?
- Sonhar com água... não é um bom sinal - disse ela, claramente mentindo com a cara.
- O que mais você viu? - insistiu.
- Um homem. Ruivo, bonito. Usava uma armadura dourada. Os olhos dele brilhavam como fogo. Acordei gritando.
Nesse instante, algo de vidro se quebrou.
Ela estava com uma xícara quebrada na mão. E sangrando.
- Mãe! - corri até ela, tirei os cacos da mão dela e a levei pra pia. Ela deixou a água correr sobre o corte.
- Tá tudo bem, foi superficial - disse, tentando fingir normalidade.
- Que porra foi essa, mãe? Por que você reagiu assim?
- Foi só... uma lembrança do passado.
Mentira.
Ela enrolou um pano na mão, e tentou disfarçar com um sorriso.
- Melhor você ir, não tem compromisso com a Jane?
- Só vou se você estiver bem.
- Estou, juro. Vai lá, se divirta. E diz à Jane que pode nos visitar.
- Ok. Mas a gente vai falar disso depois.
Beijei o rosto dela e fui.
Ela está escondendo alguma coisa. E eu vou descobrir.
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Atualizado até capítulo 22
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