Capítulo 1 — Giulia

^^^"O pecado me atrai, ^^^

^^^o que é proibido me fascina".^^^

^^^Clarice Lispector^^^

      Suspiro frustrada, observando o céu sombrio clarear aos poucos com a chegada do nascer do sol. Mais uma noite interminável sem conseguir dormir direito. Minha mente não se cala. Tudo é estranho. Mesmo o colchão sendo enorme e macio, todo movimento nessa cama é desconfortável. O teto é diferente e alto demais. As longas paredes brancas não tem nenhum dos meus quadros para dar-lhes vida. Mamãe disse para deixá-los na nossa antiga casa, que eles eram inúteis para mim. Que desenhar e pintar é desnecessário e frívolo.

      Pintar uma tela vazia e enchê-la de cores e sentimentos por trás de cada pincelada é a melhor sensação do mundo. Ainda criança, lembro do dia em que papai mostrou-me a sua obra de arte favorita em seu escritório, O Nascimento de Vênus de Sandro Botticelli. Meu rosto pequeno ficou vermelho de puro fascínio com o semblante sem igual de Simonetta Vespucci. Uma beleza pura, singela, eterna, designada a encantar o olhar de quem quer que a observe. Papai era um homem rigoroso com os assuntos da máfia, mas sempre foi um pai amoroso e apreciador fervoroso da arte. Foi dele que herdei essa minha paixão. Parece que, quando estou com minhas tintas e pincel, esqueço de todos os problemas da minha vida.

      Meu peito se comprime por não ter mais meus quadros e minhas tintas. Se tivesse eles nesse momento, estaria pintando minhas frustrações e pensamentos conflitantes nas telas.

      Sabendo que mais uma vez não vou conseguir dormir, levanto da cama. Vou em direção ao closet em meu quarto, seguro a barra rendada da minha camisola rosa-bebê e tiro-a pela cabeça. Escolho um vestido azul que chega até um pouco mais abaixo dos joelhos e calço minhas sapatilhas. Abro a porta do quarto, encontrando um longo e sombrio corredor. Se não fossem alguns dos homens armados de Alessandro Martinelli, andando esporadicamente em alguns cantos, os corredores estariam vazios. Ando um pouco incerta de estar indo pelo caminho certo dessa mansão exageradamente grande.

      Faz apenas cinco dias que mamãe e eu nos mudamos para a mansão da família Martinelli, após o seu casamento rápido. Não teve viagens de lua de mel, ou grandes comemorações, apenas um simples jantar farto com muitas bebidas alcoólicas. A única coisa boa, para mim, foram os doces e bolos que teve. Comi as guloseimas em uma cadeira afastada de todos os olhares. Menos de um. Apesar de estar do outro lado do salão, Alessandro constantemente me olhava, perseguindo qualquer movimento que fazia. Sentado em uma mesa com vários outros homens, que presumi serem importantes, ele fumava um charuto e deixava a fumaça espessa subir. Ele não se importava que estavamos em um lugar fechado e cheio de gente. Até porque, quem seria o louco que iria o repreender? Somente seus olhos assassinos já eram capazes de fazer qualquer um sair correndo.

      Sinto um grande alívio quando viro um corredor e finalmente encontro as escadarias que levam ao térreo. Como não confio nos meus dois pés esquerdos, seguro no corrimão e desço os degraus com cuidado. A cada degrau, o cheio delicioso de massa quentinha preenche meu nariz. Alguns passos à esquerda, em uma porta grande de madeira talhada com formas e linhas, forço as maçanetas para baixo e elas se abrem suavemente. Entro com um sorriso.

      — Bom dia para todas!

      Várias mulheres uniformizadas com um vestido cinza escuro e avental branco olham para a porta dupla da cozinha. Todas estão vestindo touca, escondendo seus cabelos negros ou claros. Algumas cortam verduras e frutas, outras, mexem alguma coisa com uma colher longa em uma panela no fogão enorme e lustroso.

      — Srta. Rossini? Por que está acordada tão cedo? — questionou Perla, erguendo seus olhos cansados da massa que estava sovando com afinco. — A mesa para o café da manhã ainda não está pronta.

      Perla é a chefe de cozinha da casa Martinelli e, com a ajuda das outras cozinheiras, seus pratos são incrivelmente saborosos. Ela é uma mulher baixa, de expressivos olhos castanhos, cabelos firmemente presos e grisalhos. Desde que cheguei nessa casa, para evitar sucumbir a solidão do meu quarto sem vida, conversei com a maioria dos trabalhadores e a pessoa que eu mais me tornei próxima nesses poucos dias foi Perla. Dava para ver, até nos mínimos detalhes, que ela sente o mesmo por mim. Como Perla sabe que sou pior que uma formiga atrás de açúcar, ela faz bomboloni todos os dias para mim comer no café da manhã.

      — Não consegui dormir.

      Ela arqueia uma sobrancelha com fios brancos, colocando uma mão cheia de farinha na cintura. Sei que Perla vai escrutinar-me, por isso, mudo de assunto rapidamente:

      — É só Giulia, Perla. Chama-me pelo nome, por favor.

      — Já conversamos sobre isso, piccolina¹. Não posso chamar pelo nome a filha da mulher que tenho que obedecer.

      — Não vejo problema nenhum nisso.

      Perla sorri, mostrando várias linhas envolta dos olhos e uma covinha em sua bochecha esquerda. Ela volta à amassar a massa sobre o mármore cheio de farinha branquinha.

      — Você pode não ver problema, mas a Sra. Martinelli verá.

      Aproximo-me do mármore e observo suas mãos magras, cheias de manchinhas da idade e veias salientes, abrirem a massa com movimentos fortes e constantes para, logo em seguida, fechá-la, massageando-a com cada deslocamento de suas mãos experientes.

      — Então me chame pelo nome quando mamãe não estiver. Por favor, Perla — peço, erguendo os olhos da massa que parece estar macia e fofa, mesmo ainda crua.

      Perla espreme os olhos castanhos, como se estivesse decidindo a resposta, mas pelo seu discreto sorriso nos cantos dos lábios, sei que ela vai acatar o meu pedido. Gosto muito da amizade que adquiri com Perla nesses dias pacatos. Estranhamente, ela me trouxe uma sensação de lar desde o primeiro momento que a vira.

      — Por enquanto, vamos deixar isso de lado e falar do seu dia especial, piccolina! Não pense que esquecemos, viu? — Perla abre um enorme sorriso animado e entreolha as mulheres trabalhando ao seu lado. — Fizemos algo para você hoje mais cedo. Você vai adorar!

      — Perla nos contou que gosta de chocolate, Srta. Rossini. Nossa, esse bolo você vai gostar muito! — interveio Carina, entusiasdamente. Seus cachos avermelhados dentro da touca branca, somente alguns fios rebeldes caindo ao lado do rosto pequeno e coberto de sardas. Carina é a ajudante de cozinha mais nova, e a mulher mais alto-astral que conhecera da mansão.

      Sorrio, contagiada pelo seu sorriso amplo.

      — Grazie², mas não precisavam se incomodar.

      — Você nunca incomoda, piccolina. — Perla afirma, seus olhos brilhando.

      — Feliz aniversário, Srta. Rossini! — Carina comemora sorridente e anda até onde estou, seus passos um pouco incertos, suas mãos pequenas esmagando o avental de modo ansioso.

      Elas lembraram. Meus olhos se enchem de lágrimas e meu coração fica quente com uma sensação reconfortante alastrando-se pelo meu corpo. Termino o caminho até Carina e passo meus braços envolta de seu pescoço, fazendo aquilo que ela estava sem graça de tomar iniciativa. Suspiro, realmente contente com o meu aniversário até aquele momento. Desde a morte de meu pai, podia contar nos dedos de uma mão a quantidade de pessoas que lembravam do dia do meu nascimento. Mas, receber um abraço e um presente já eram coisas incríveis e especiais para mim. Não me sentia assim faziam anos...

      — Vocês não sabem o quanto esse gesto é importante para mim — confesso, afastando-me gentilmente.

      — É seu aniversário de 18 anos, não podíamos deixar essa data especial passar sem um presente!

      — Oh, Santo Dio! Está fazendo 18 anos? — Uma mulher pergunta com os olhos arregalados.

      — Sim, por quê? — respondo, juntando as sobrancelhas em confusão.

      A mulher, que não sei o nome, olha-me com pesar e tristeza. Tamanha pena que sinto-me como um pobre gado que seu destino ininterrupto é para o abatedouro.

      — Dio mio, que tenha pena de você.

      Um arrepio gélido desce pela minha coluna.

      — O que a senhora quer dizer com isso?

      — Não ligue para as besteiras que Matilde diz, Giulia. — Perla olha com raiva para a mulher, que rapidamente volta a cortar os legumes, ignorando minha pergunta. — Vá para a mesa de jantar, piccolina. Daqui a pouco vamos ir lá para servi-la.

      Travo meus pés no lugar, encarando as costas curvadas da mulher que voltara a fatiar legumes. Meu corpo formiga e minha mente trabalha arduamente para tentar descobrir o que ela queria dizer pois, pelo modo que Perla a censurou, era algo muito deplorável e ela não queria me ferir de maneira nenhuma. Estava prestes a questionar Matilde quando Perla murmurou com mais rigidez:

      — Vá para a mesa. Por favor.

      Suspiro e saio da cozinha. Ando poucos passos até uma sala grande e iluminada com janelas que vão do chão lustroso, ao teto claro. Alguns vasos, — que, com certeza, devem valer milhares de euros, assim como o restante da mansão — estendem-se ao lado das portas. Muitas dessas portas ainda não sei exatamente para onde levam. Sento-me em uma cadeira na lateral da mesa comprida e espero.

      Uns minutos depois, escuto o familiar tilintar dos saltos altos contra o piso e viro a cabeça para encontrar mamãe e a signora Ginevra Martinelli, mãe de Alessandro. Como sempre, mamãe está impecável em seu vestido longo e justo, realçando suas curvas e elegância. Seus cabelos negros estão presos em um coque alto, seu rosto perfeito cheio de maquiagem e um batom fosco em seus lábios. Nunca vira mamãe de outra forma, que não fosse essa. É como se ela já dormisse e acordasse assim, perfeita.

      — Buongiorno³, Giulia! — Ginevra cumprimenta com um sorriso e senta em minha frente.

      — Buongiorno — respondo.

      Mamãe acomoda-se ao lado de Ginevra sem dirigir nenhuma palavra ou olhar para mim.

      — Como foi sua noite, Giulia?

      — Ótima — minto com um sorriso que espero ser convincente. — E a da senhora?

      — Não dormi bem. Sei que meu filho é um homem feito e sabe se cuidar, mas ainda fico muito preocupada. Principalmente com os conflitos constantes que está acontecendo com a Bratva. Pela nossa relação instável com eles, temo que uma guerra ocorrerá em breve. — Ginevra olha para mim com tristeza, seus belos olhos verdes transparecendo suas emoções.

      — Bobagem, Ginevra — mamãe desdenha, parecendo recordar nossa presença só agora. — A guerra e o sangue de inocentes são necessários para um mundo mais poderoso. A dor e as lágrimas são essenciais para alcançar algo maior.

      Ginevra fica estatelada, piscando inúmeras vezes.

      — Isso é um modo muito cruel de pensar, Mia.

      Mamãe encolhe os ombros, indiferente.

      — Não é um modo de pensar. É a realidade. Tem que ser derramado sangue, não importa de quem seja, para adquirir o poder.

      Engulo em seco, suor frio escorre em minha testa com suas palavras duras, insensíveis. As vezes, mamãe é tão impiedosa e impia que é difícil conciliar suas ações comigo. Somos muito diferentes.

      O ar torna-se pesado, mas Ginevra tenta quebrá-lo, seu sorriso crescendo aos poucos:

      — Feliz aniversário, mia cara⁴. Que seu dia seja maravilhoso.

      — Obrigada, Ginevra. — Sorrio, mas ele logo some com o que mamãe diz em seguida.

      — Agora você é uma mulher, Giulia. Vai finalmente orgulhar-me e fazer seu nome na famiglia. — Pela primeira vez em vários dias, ela olha e fala diretamente comigo e não pede alguém para fazê-lo. Seu jeito frio e distante me machucam, ferindo-me mais que um corte aberto por uma faca. Mamãe pode ser indelicada, entretanto é minha mãe. Não deixo de amá-la menos, e suas palavras importam muito para mim. Sempre busquei sua aprovação, seu orgulho, porém isso nunca aconteceu.

      Logo várias cozinheiras que conheço entram na sala e servem nosso café da manhã, distraindo minha mente da conversa anterior. A mesa enche com pães, bolos, massas e doces variados. Como de tudo um pouco, sem evitar meus suspiros de satisfação com o gosto de céu que Perla e suas ajudantes prepararam para nós. Meu bomboloni⁵ está simplesmente maravilhoso com a massa fofinha que derrete na língua, espalhando o sabor divino do recheio de creme. Todos os bomboloni que Perla faz são perfeitos, mas esse, de creme com um toque irresistível de canela, é sensacional.

      Um estrondo alto ecoa, estremecendo as paredes. Assustada, abro os olhos em um segundo e engulo com dificuldade a massa quente. Arquejo e fico horrorizada com o que encontro. Meu estômago revira, ameaçando voltar todo doce que devorei.

      Alessandro está parado no batente da porta, seu terno escuro coberto de sangue cristalino, consumindo também parte de seu rosto esculpido. Algumas gotas caem chão, tingindo o piso com um tom escuro de vermelho. Estremeço. Apesar de suas roupas estarem cheias de sangue, ele não parece ferido. Seu terno está intacto, sem nenhum buraco. Sinto-me aliviada quando constato que o sangue provavelmente não é dele, mas reprimo essa sensação para o fundo da minha mente. Por que estou me preocupando com ele?

      Os olhos de Alessandro estão mais aterrorizantes do que da última vez que o vira. Ele emana uma aura macabra e lasciva que carrega incontáveis demônios famintos nas órbitas esverdeadas. Ele avalia lentamente a mesa farta, Ginevra, minha mãe e param em mim. Seus olhos verdes parecem acender como carvão em uma chama densa, devasso, carnal. Sua respiração fica frenética e curta.

      Meus lábios tornam-se secos e sinto um calor gostoso atravessar minha barriga e se alojar no meio das minhas pernas. Remexo na cadeira, sentindo esse órgão pequeno pulsar. Os bicos dos meus seios se enrijecem embaixo do vestido fino. Arregalo os olhos com a reação diferente do meu corpo e contraio minhas coxas, apertando o meio delas que parece úmido e sensível. Meu coração trôpega no meu peito, veloz e quente. Na verdade, tudo em mim parece quente e desejoso.

      Alessandro abre um sorriso medonho, impiedoso e feroz. Ele sabe. Ele sabe o poder que possui sob meu corpo.

      Sem esperar uma ordem de mamãe para poder me retirar, levanto-me da mesa e corro, ignorando minhas pernas trêmulas. Subo as escadas longas e chego em meu quarto solitário e desconhecido. Fecho a porta e apoio minhas costas na madeira fria e solto todo o ar dos meus pulmões.

      O que está acontecendo comigo?

      Vi esse homem poucas vezes, mas é só seus olhos cor de esmeraldas pousarem em mim que meu corpo vira fogo líquido, qualquer pensamento se dissolve. Ele é o próprio diabo, seduzindo-me com suas perversões. Não posso pecar. Não posso. Porém, sinto-me cada vez mais submetida a cair em sua depravação e sucumbir aos seus demônios.

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!