Capítulo 01

Quando Chloe estabilizou o gigante de metal acima das nuvens, a paisagem lá fora, um vasto oceano de algodão branco sob um céu infinito, parecia zombeteiramente pacífica em contraste com a turbulência em sua mente. A última conversa com o chefe, adiada por mais de três meses, ecoava em seus ouvidos. Não havia mais para onde fugir. Precisava se afastar. Distanciar-se daquele barulho familiar dos motores, do cheiro de querosene que era seu perfume favorito, da carreira que ela havia erguido com tanto suor e paixão. O pesadelo, frio e implacável, estava acontecendo. Seria seu último voo como piloto - pelo menos até que tivesse a certeza, a mínima que fosse, de que estaria apta para retornar.

— Comandante, posso assumir agora. Vá descansar um pouco, ainda temos um longo caminho até Guarulhos. — Comunicou Gael, o copiloto, sua voz calma cortando o devaneio de Chloe.

Ela assentiu, a garganta apertada.

— Qualquer urgência, você me avisa.

Chloe se dirigiu ao sarcófago, um compartimento pequeno e silencioso, que, apesar do nome macabro, era o refúgio da tripulação em voos de longa duração. No entanto, o descanso não veio. Seus pensamentos, como abutres famintos, maltratavam sua mente. O que faria agora? Antes de deixar o Canadá, havia ligado para o pai. Combinaram de se encontrar na sede da empresa da família no dia seguinte. Chloe ainda não acreditava que estava tomando aquela decisão. Trabalhar com o pai, nunca foi uma opção. Mas ela precisava manter uma renda ativa, até conseguir voltar para a profissão que tanto adorava.

Ninguém de sua família sabia da decisão que tomara. Somente seu chefe, que após muita relutância, permitiu seu afastamento. Chloe alegou problemas pessoais urgentes, uma "fase ruim" que exigia sua total atenção. Não deu uma data de retorno, deixando sua vaga em aberto, um convite para que outro tomasse seu lugar. Seus amigos de cabine, que a viam como a personificação da aviação, ficaram chocados. "A mulher está ficando louca", murmuravam. Mas Chloe não se importava. Não deu detalhes, nem mesmo para Gael, seu copiloto e colega mais próximo no trabalho, não que ela tivesse muitos. O motivo de sua troca de carreira era um segredo guardado a sete chaves, um fardo pesado que ela não ousava compartilhar.

(---)

Quando Lara chegou em casa, o relógio marcava bem mais das quatro da madrugada. Era um padrão. Um convite de amigos da faculdade para uma festa, e a jovem médica se perdia na madrugada, entregue à euforia de conhecer novas pessoas e dançar até o sol ameaçar surgir. Muitas vezes inconsequente, sim, mas nunca arrependida de suas loucuras. "Afinal, a vida é para ser vivida", era seu mantra inabalável.

O que a ruiva não esperava, no entanto, era encontrar seu pai, Luís, sentado em sua poltrona velha e gasta, um assento que ele se recusava a trocar.

— Filha, estava preocupado. Você não deu notícias. — Seu Luís não era um pai controlador, longe disso. Compreensivo, ele sempre defendia Lara quando sua mãe, Helena, se exasperava com as escapadas noturnas da caçula. Quando jovem, a menina tinha o hábito de sair escondida para festas e voltar sem ser notada, o que tirava Helena do sério. Para Luís, era a efervescência da juventude. Mas agora, com os 25 anos se aproximando rapidamente, e apesar de sua inegável dedicação aos estudos de medicina, Lara continuava a "farrear" como se o amanhã não existisse.

— Oi, pai. — Lara se inclinou para beijar a testa do homem, um leve cheiro de álcool misturado ao perfume da noite ainda pairando nela. — Desculpa, meu celular descarregou.

— Sua mãe foi dormir há poucos minutos. Ela está uma fera com você.

— Deixa que amanhã eu me entendo com ela. — Lara respondeu com uma despreocupação atrevida.

— Onde você estava? — Luís se levantou, caminhando até a geladeira para pegar um copo d'água para a filha, cuja embriaguez era evidente.

— Minha colega deu uma festa. O pessoal do estágio estava lá também. Depois do trabalho, fomos todos juntos.

— Sei que está empolgada com seus novos amigos de estágio, mas você não acha que está na hora de diminuir o ritmo um pouco? — Luís colocou a água à frente da filha, que já estava sentada, seu olhar interrogativo revelando que a jovem não estava entendendo a onde o pai queria chegar.

— O que o senhor quer dizer com diminuir o ritmo?

— Talvez chegar mais cedo em casa, ter amigos e sair é bom, mas tudo que é demais não faz bem. Não sei, mas você poderia começar a namorar. Nunca vi você levando alguém a sério. Não pensa em se casar, ter uma família, como a sua irmã está fazendo? — A pergunta, carregada de uma expectativa velada, atingiu Lara em cheio. A referência a Sophie, que havia se casado a pouco tempo e estava construindo uma linda e cativante família, era um peso a mais na balança.

— Essa conversa de novo, papai? Já disse que estou focada nos meus estudos. Um relacionamento só vai atrapalhar a minha vida.

— Mas também pode ser bom, filha. Não precisa ser um fardo. Olhe para mim e para sua mãe, somos felizes. Só quero que você sossegue um pouco.

— Vou pensar nisso, tudo bem? Agora tenho que dormir, daqui a pouco tenho que estar no hospital. — Lara abraçou o pai e beijou seu rosto. Ele sempre se derretia com aquele comportamento carinhoso, e Lara não perdia a oportunidade de dobrá-lo com sua doçura estratégica.

— Tá bom, filha. Tenha um bom descanso. Não esqueça de falar com a sua mãe.

— Pode deixar. Amanhã falo com a fera. — O pai riu do tom engraçado que a filha usou. Lara sempre foi impossível de dominar, apesar da doçura, tinha um gênio forte e se autogovernava. Ele e a mulher, apenas tentavam em vão desacelerar a filha.

Lara subiu as escadas quase correndo, a promessa de sono um convite irrecusável. Deixou suas coisas na cama e, em um movimento rápido, tirou a roupa. Precisava de um banho, desesperadamente. O dia anterior fora uma maratona: da faculdade para o estágio, e de lá para a festa de aniversário de sua colega. O que deveria ser uma simples celebração se transformou em uma virada de noite épica, como nos velhos tempos. Não podia reclamar; a festa estava cheia de pessoas lindas e atraentes, um verdadeiro coquetel para a alma livre e espirituosa da médica.

Após o banho, a ruiva se jogou na cama. Checou algumas mensagens no telefone, o brilho da tela piscando em seus olhos pesados, e logo se entregou ao sono.

(---)

Na manhã seguinte, o cheiro de café fresco mal havia se dissipado no ar quando Lara tentou se esgueirar pela cozinha. Mas antes que pudesse sequer pensar em uma fuga estratégica, a voz firme de sua mãe, Helena, a interceptou.

— Seu pai me contou sobre a sua aventura. — Dona Helena, que era a personificação da impaciência, cruzou os braços, os olhos azuis idênticos aos da filha faiscando. — Você não tem vergonha de chegar em casa às quatro da manhã, Lara?

Lara, já com um sanduíche em mãos que a mãe havia preparado, tentava equilibrar seus inúmeros materiais de estudo e a refeição matinal.

— Estava com meus amigos, mãe. Trabalhei tanto durante a semana. Que mal tem me divertir um pouco?

— Se fosse só isso, não estaríamos tendo essa conversa. Você sai todas as noites. Raras as vezes em que fica em casa. Já está na hora de se aquietar, minha filha. Veja a sua irmã, casou. Agora está grávida. Não fica se aventurando nessas festas imundas e perigosas que você frequenta. — A comparação com Sophie, sempre radiante e agora à espera de um bebê, era uma flecha direcionada com precisão ao coração da caçula. Lara adorava a irmã, mas desde que Sophie casou, os pais focaram todos os seus esforços em arranjar alguém para ela. Na maior parte do tempo, ela relevava, mas já estava se tornando cansativo.

— Meu Deus, mãezinha. Se acalme, assim você vai ficar estressada. Prometo que não vou sair hoje. — Lara sentia o peso da expectativa, daquele modelo de vida "perfeito" que a mãe tanto idealizava para ela. Não era contra encontrar alguém, um amor que a arrebatasse, mas sabia que o verdadeiro amor não se achava na esquina, e ela, até então, só havia conhecido paixões efêmeras, fogos de artifício que brilhavam intensamente e se apagavam com a mesma velocidade.

— Dessa vez não vou acreditar nas suas promessas. Preciso de mais do que isso.

— Onde a senhora quer chegar, mamãe? — Quando Dona Helena entrava naquele modo intransigente, Lara sabia que era inútil argumentar. Melhor ir direto ao ponto.

— Seu pai e eu. — A mãe começou, uma leve hesitação em sua voz. — Arranjamos um encontro para você.

— O quê?! Em que século vocês acham que estamos, de novo isso? — Lara exclamou, sentindo o absurdo da situação. Seus pais, às vezes, conseguiam ser inacreditáveis.

— Seu pai disse que você também fica com garotas. — Helena falou, um pouco sem jeito, visivelmente se adaptando às nuances da vida das filhas, mesmo que as aceitasse com amor. — Ela é filha de um amigo. Moça boa, com bom emprego. Vem de uma boa família.

— Meu Deus, você está se escutando, mamãe? Não acredito que querem que eu concorde com um encontro arranjado! — Lara tinha certeza que a mãe estava ignorando a sua indignação.

— Só me escute, filha. Acho que você até já a conhece. Seu pai disse que ela se chama Chloe. É irmã do seu amigo Henrique. — O nome, pronunciado sem pretensão, atingiu Lara como um raio. Chloe. A piloto. A mulher alta, de olhos claros e postura séria que ela havia conhecido na despedida de solteira de Sophie meses atrás. A mulher que havia despertado um interesse imediato, quase reverencial, como uma deusa antiga. Um tipo de interesse que Lara admirava, mas sabia que era inatingível, algo que nunca aconteceria. E agora, sua mãe estava dizendo que Chloe havia concordado em sair com ela? Era quase impossível de acreditar. Mas a mera possibilidade fez seu coração disparar.

— É, nos conhecemos malmente. Nada demais. — A médica tentou disfarçar o entusiasmo súbito, a euforia que sempre a dominava diante de uma nova (e, nesse caso, inesperada) conquista. — Não sei, acho muito careta esse negócio de encontro arranjado.

— Vamos, filha, pelo menos tente. — A súplica da mãe era a deixa perfeita. Lara viu ali a oportunidade de ouro para que seus pais a deixassem em paz por um bom tempo.

— Eu vou, mas a senhora tem que me prometer que, se não der certo, nunca mais vai tocar no assunto de namoro, casamento, construir família. — O acordo já estava, em sua mente, sacramentado. Era óbvio que nada evoluiria entre ela e Chloe. A piloto, tão reservada, não parecia ter o menor interesse em namorar. Lara estava certa de que ambas estavam sendo obrigadas a aceitar aquela loucura.

— Combinado. Mas você tem que dar o seu melhor. Coloque uma roupa legal, seja gentil e atenciosa. — Helena advertiu, um sorriso de vitória discreto no rosto. Lara sabia que mesmo que o encontro não desse certo, os pais não iriam parar de insistir nessa ideia. Tinha sido assim durante o ano anterior. Ela nunca ficou chateada de verdade, sabia que eles só queriam que ela fosse feliz. Mas Lara não tinha culpa se o mercado para namoros sérios estava escasso. Sem falar que para o casamento, ela não pensava em ninguém do seu ciclo de ficantes, atuais.

— Eu sou sempre gentil, mamãe! — Lara se fez de ofendida, um toque de humor em sua voz.

— Você entendeu. Agora vá trabalhar. O encontro é às 20h. Não se atrase.

— Tá bom. Tchau. — Lara beijou o rosto da mãe e saiu apressada, o relógio já marcando o tempo apertado para o hospital.

Ela tinha plena certeza de que aquele encontro não daria em nada. Mas se o destino, por alguma razão maluca, estava lhe dando a oportunidade de sair com Chloe, ela não seria tola de não aproveitar. Quem, em sã consciência, desperdiçaria a chance de ver de perto uma deusa?

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Comments

A.Maysa

A.Maysa

então não perca a chance dona Lara 🤭... conquiste a sua deusa

2025-06-16

2

Maria Andrade

Maria Andrade

começando a ler agora a espectativa é grande por mais uma história sua

2025-07-10

1

Maysa

Maysa

Aproveite essa chance dona Lara....

2025-06-16

2

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