Capítulo Dois – Sangue e Justiça
O silêncio da madrugada era quebrado apenas pelo som grave de um motor importado atravessando lentamente as ruas estreitas de um bairro afastado do centro. No banco traseiro de um sedã blindado, Dante Morelli observava as janelas apagadas das casas simples. Seus olhos estavam distantes, mergulhados nas sombras da memória. Ele não voltava àquele lugar há anos, mas naquela noite, algo dentro dele exigia revisitar o início de tudo. O lugar onde o homem se partira em dois: o juiz e o Don.
Nápoles, anos atrás
O pequeno Dante tinha apenas doze anos quando viu o pai pela última vez. Francesco Morelli era respeitado, um homem justo dentro de seus próprios códigos, mas também impiedoso quando necessário. Era o Consigliere de uma das famílias mais antigas da máfia napolitana — a Famiglia Salvatore. Durante o dia, Francesco era advogado penalista, defensor público, protetor de inocentes. À noite, tornava-se a voz de equilíbrio entre o sangue e a honra.
Naquela manhã de setembro, o som dos tiros ecoou pela viela e o menino correu para fora de casa apenas para ver o corpo do pai estendido na calçada, o terno escuro banhado de vermelho. O olhar vítreo de Francesco ficou gravado na mente de Dante como um retrato inapagável da fragilidade da justiça. Sua mãe, Antonella, desabou, mas ele não chorou. Não ali. Não diante da multidão que observava em silêncio respeitoso.
— Eles o mataram porque ele tentou fazer a coisa certa — disse Antonella, apertando o rosto do filho. — Prometa que nunca será fraco como ele.
Dante prometeu. Mas sua ideia de fraqueza e força mudaria ao longo dos anos.
Nova Iorque — 2005
A mãe o levou para os Estados Unidos, tentando romper com o passado. Dante era um adolescente brilhante, fluente em duas línguas, e entrou com mérito em Harvard, onde estudou Direito com dedicação obsessiva. Mas mesmo entre as bibliotecas e debates acadêmicos, ele jamais esqueceu de onde viera. O nome Morelli ainda carregava peso nos círculos ocultos da máfia, e velhos aliados do pai observavam o garoto com interesse. Um em especial: Luca Vitale, o último Padrino dos Salvatore.
Foi Luca quem o procurou na saída da universidade, num dia chuvoso de inverno. Dante, então com vinte e dois anos, já era conhecido pela frieza nos debates, pelo raciocínio afiado. Luca o saudou com um abraço, como se o tempo não tivesse passado.
— Estudou para conhecer as regras. Agora é hora de decidir se quer apenas segui-las... ou moldá-las, como seu pai tentou fazer.
Dante não respondeu de imediato. Mas aceitou o convite para jantar. E naquela mesa luxuosa, cercado de homens perigosos e silenciosos, viu que ainda havia espaço para justiça — uma justiça paralela, direta, muitas vezes cruel, mas infinitamente mais eficiente do que os tribunais.
Aos vinte e cinco anos, formou-se com louvor e passou nos exames para se tornar juiz federal. Uma ascensão meteórica, elogiada publicamente, mas silenciosamente patrocinada pela mão invisível de Luca. Era a armadura perfeita: um juiz incorruptível na superfície, que julgava com precisão... e eliminava as ameaças que escapavam da lei com a frieza de um executor.
Presente — Gabinete do Juiz Morelli
A batida na porta o tirou do transe. Enzo entrou com uma pasta de couro.
— A senhora Sofia Almeida está aguardando. A advogada do caso Valente.
Dante arqueou uma sobrancelha.
— A mesma que desafiou a promotora diante da imprensa?
— Ela mesma. Sagaz, impetuosa. E... com muitos contatos políticos.
— Mande entrar.
A porta se abriu e uma mulher de presença avassaladora adentrou o gabinete. Sofia Almeida tinha olhos de lince e postura de guerreira. Usava um blazer azul-marinho justo e cabelos presos num coque impecável. Seu perfume doce e cítrico preenchia o ambiente antes mesmo de dizer uma palavra.
— Meritíssimo — ela disse com um leve aceno de cabeça. — Vim conversar sobre o caso Valente. Creio que há detalhes que precisam ser reconsiderados.
— Detalhes ou... interesses?
— Às vezes são a mesma coisa. — Sofia sentou-se sem ser convidada. — Você sabe tão bem quanto eu que os bastidores decidem mais que os tribunais.
Dante a estudava como se ela fosse um enigma. Havia algo nela que lembrava Antonella — a mesma determinação feroz, a beleza afiada como lâmina.
— E o que exatamente deseja, doutora Almeida?
— Que a promotora Valente seja retirada do caso. Oficialmente, por conflito de interesse. Extraoficialmente... bem, você entenderá com este dossiê. — Ela deslizou a pasta sobre a mesa.
Dante a abriu e leu em silêncio por alguns segundos. Fotos, transcrições, suspeitas. Todas minuciosamente reunidas.
— Isso não prova nada — ele disse com calma.
— Mas planta dúvidas suficientes. E às vezes... é tudo o que precisamos.
Ele fechou a pasta, apoiando os cotovelos sobre a mesa.
— Não gosto de ser manipulado, Sofia.
— Não estou manipulando você. Estou te dando alternativas. Como você mesmo diria: a verdade tem mais facetas que um diamante.
Houve um instante de silêncio carregado. Depois ela se levantou, ajeitou o blazer e sorriu.
— Pense com carinho. O julgamento está só começando.
Quando ela saiu, Enzo reapareceu.
— Vai ceder?
— Não — Dante respondeu. — Mas quero que investigue Sofia Almeida a fundo. Algo me diz que ela tem mais segredos que a promotora Valente.
Enzo assentiu e desapareceu. Dante voltou o olhar para a cidade lá fora. Lá embaixo, os carros fluíam como sangue em veias de asfalto. Ele havia aprendido que às vezes a justiça precisava ser afiada como uma faca e rápida como uma bala. Mas com mulheres como Isadora e Sofia no tabuleiro, ele precisaria de algo mais: controle absoluto.
E ele o teria. Como juiz. Como Don. Como Morelli.
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Atualizado até capítulo 63
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