Rastros - Narrativa de Margô

Os dias seguintes passaram com uma estranha densidade. Como se o ar dentro do prédio tivesse mudado. Como se algo invisível se instalasse entre as paredes e me observasse dormir, comer, tentar estudar.Não vi mais Raul. E isso, por si só, deveria ser um alívio. Mas o que ficou foi pior: a lembrança. O olhar dele. A pressão no meu braço. O jeito como me disse que eu ainda era dele.

Mas mais do que isso — a forma como Dmitry o encarou.Como se ele fosse um inseto como se só o fato de estar ali já fosse uma ofensa.

Desde aquela noite, não consegui mais ouvir os ruídos do apartamento ao lado da mesma forma. Agora, cada som carregava um duplo sentido. Cada batida de porta. Cada passo pesado. Cada arranhão na parede fina.

E às vezes... nada.

Às vezes, Dmitry não estava em casa.

Horas de silêncio absoluto. Noites em que o apartamento parecia vazio. Sem passos, sem música, sem vozes femininas ou o ruído do ferro batendo na bancada da cozinha. Eu passava por sua porta e notava as luzes apagadas, a fechadura trancada por dentro,nada, ausência total.

Outras vezes, ele voltava tarde — muito depois de eu já estar deitada, mas não dormindo. O som da porta se abrindo com cuidado,as botas no chão, o barulho de gavetas se abrindo e fechando.

Não sei por que isso me deixava inquieta,talvez porque ele voltava como alguém que não quer ser visto.

Comecei a observar pequenos detalhes. Os dias em que ele sumia coincidiam com sirenes ao longe. Com rumores no noticiário local , desaparecimentos, movimentações estranhas nos distritos industriais.

Mas isso eram só suposições,coincidências,ou eu me enganava por querer encontrar padrões onde só havia... um homem estranho que fumava demais e falava de menos.

Eu não sabia o que ele fazia.Mas meu corpo já parecia saber antes da minha mente.Ele carregava uma presença que ocupava o espaço mesmo quando ausente. E havia momentos em que eu me via ouvindo o silêncio ao lado — esperando algum sinal de que ele havia voltado. Uma gaveta abrindo, portas sendo abertas, a música que sempre colocava.

Coisas pequenas,coisas que não deveriam importar.

Mas importavam.

Na noite seguinte ao episódio com Raul, deixei o casaco dele pendurado perto da porta,pensei em devolver,pensei em bater,mas não o vi o dia todo. Nem no dia seguinte.

No terceiro dia, fui à aula mais cedo e voltei quase meia-noite. Ao subir as escadas, vi um rastro de cinza no corrimão: fuligem de cigarro, ainda fresca. O corredor estava escuro, mas a porta dele estava entreaberta, como se tivesse acabado de chegar.

E ali, por um instante, nossos olhos se cruzaram de novo.Ele estava sentado no chão do corredor, encostado na parede oposta à porta dele,cotovelos nos joelhos, cigarro aceso entre os dedos,a fumaça desenhava espirais no ar frio.

Eu hesitei,ele não disse nada.

Apenas fez um gesto com a cabeça, discreto. Quase imperceptível.

Boa noite.

Respondi com um aceno, silenciosa.

E entrei no meu apartamento com o coração batendo rápido. Sem saber se era medo, alívio... ou alguma coisa muito mais perigosa....

Narrativa de Dmitry

Alguns trabalhos exigem precisão. Outros, paciência. Os piores pedem silêncio — e fogo.

Ninguém fala disso quando entra. O dinheiro parece suficiente, o respeito, também. Mas com o tempo, você entende que certos serviços deixam um gosto amargo que nem vodka boa tira,e eu era chamado para os piores, os finais,os que exigiam não só matar, mas fazer desaparecer.

Não é glamour. É logística.

Corpos não somem sozinhos. Você aprende a limpar sangue como quem lava louça. A identificar a hora certa para mover um “pacote” sem chamar atenção. Aprendi a escolher lugares onde o concreto engole a história e onde as autoridades não olham por escolha própria. Distritos industriais, subsolos de fábricas abandonadas,tanques com ácidos fortes o bastante pra apagar até os dentes.

Era disso que minha semana tinha sido feita:

Quatro nomes, três cidades, dois chefes me pressionando. Um dos alvos me chamou pelo nome antes de eu puxar o gatilho,isso me ferrou por dentro mais do que devia,e quando isso acontece, eu volto diferente,mais quieto,mais contido.

Voltei já era quase meia-noite. São Petersburgo ainda respirava fumaça das fábricas noturnas. O frio era do tipo que entra pelas costelas,sentei no chão do corredor, costas na parede oposta à minha porta. Não tinha forças pra entrar, cigarro aceso, polegar coçando o isqueiro no bolso do casaco como um tique nervoso.

Ali, sozinho, tentei esvaziar a cabeça. Mas ela veio,de novo.

Margô.

O rosto dela surgia em momentos aleatórios — entre tiros abafados, no retrovisor sujo de sangue, nas pausas entre uma ordem e outra. Era como uma linha de pensamento que insistia em não se romper.

O jeito como ela franzia a testa quando o prédio fazia barulho demais.

Depois daquela noite com o sujeito....o tal Raul, achei que ela bateria na minha porta,ou me olharia com raiva, com medo. Nada. Só o casaco pendurado perto da porta, como um aviso,como uma lembrança do que eu tinha visto e do que ela queria esquecer.

Mas o que me surpreendeu foi o que aquilo me causou,eu devia seguir,focar no trabalho,manter distância.

Não consegui.

Na terceira noite longe, pensei nela no meio de um depósito onde o chão ainda estava quente da combustão. Pensei no som dos passos leves dela no corredor, nos livros que ela carregava, na expressão de quem ouve o mundo aos pedaços e mesmo assim não desiste de tentar entender.

E então, quando menos esperava, ela apareceu.

Quase meia-noite. Eu ouvi os passos antes de ver. Passos hesitantes na escada de concreto,ela subiu devagar, talvez cansada, talvez com receio. O corredor estava escuro, só a luz quebrada da lâmpada sobre a porta dela lançava um tom amarelado no chão.

Minha porta estava entreaberta,nem percebi que tinha deixado assim,quando ela chegou ao topo da escada, nos vimos.Margo parou.

Por um instante, ela parecia uma pintura. O sobretudo ainda úmido pela neve fina,o rosto meio sombreado, mas os olhos... os olhos brilhavam mesmo no escuro,não com medo,com alguma outra coisa,curiosidade,inquietação.

E eu ali, sentado no chão como um cão de guarda cansado.

Fiz um gesto mínimo com a cabeça. Um cumprimento silencioso, sem cobrança, sem convite.Ela respondeu com um aceno,rápido. Contido. Mas estava ali, entre um leve rubor em seu rosto.Entrou em casa, fechou a porta devagar.

E eu fiquei,fumando em silêncio, o cigarro queimou até o filtro.

O peito ainda queimava também.

Eu sou bom em apagar rastros,apagar pessoas,vidas inteiras.

Mas com ela...com ela eu só queria que ela me visse.....talvez além disso.....

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