Escadarias- Narrativa de Dmitry

Desde o primeiro dia, eu notei,antes mesmo de saber seu nome, antes de ouvir sua voz, eu notei.

No terceiro andar, porta à esquerda. Ela entrou no prédio logo atrás de mim, mãos enfiadas nos bolsos, o gorro mal escondendo os cabelos ruivos que escapavam em fios soltos. Cabelos como brasa abafada,que brilha como cobre quando a luz dos corredores falha , a pele clara demais , parecia que o sol tinha esquecido dela, sardas, pescoço longo e olhos verdes, frios como vidro sob geada ,mas alem disso que examinavam tudo.Foi assim que percebi: ela não ouvia como os outros , não reagiaaos sons comuns.Percebi pelo modo como virava o rosto na direção errada quando alguém falava. Pela atenção que dava aos lábios dos outros. E quando ela respondeu ao senhor do 2C num dia qualquer com um francês murmurado e esforçado, entendi mais: ela não era daqui.O sotaque. O francês. A cadência das palavras Paris ou Lyon, talvez. Mas havia dor na forma como ela dizia coisas simples. Como se cada frase fosse arrastada para fora de um buraco escuro.

Ela tentava passar invisível,casaco grosso, camadas e mais camadas de roupa para aguentar o inverno russo,mas não adiantava ,a curva do quadril, o pescoço exposto ao tirar o cachecol, as sardas escondidas que o frio não apagava. Ela era linda, mas parecia odiar ser notada.

E isso só me fez notar mais.

Não falamos muito,quase nada, um aceno ocasional com a cabeça, uma troca de olhares vez ou outra , os corredores daqui sao apertados , sem elevador , apenas escadas gastas e frias , a gente se cruza sem querer , sem desculpa, um silêncio compartilhado. Mas ela me escutava com os olhos.E eu... comecei a escutar o silêncio dela .Era denso,como uma parede.E eu sempre tive o hábito — ruim ou não — de atravessar paredes.

Mas ela sabe de mim.Assim como eu sei dela

Ouvi mais de uma vez, o som seco das portas batendo quando minhas noitadas começavam,as paredes são finas,não fiz esforço para esconder , os gemidos,os risos exagerados, os saltos no piso de madeira.Ela me ouvia,e isso......me divertia. Talvez porque ela fingia não se importar, mas eu via nos olhos dela,o incômodo, e havia algo bonito na forma como ela tentava disfarçar o desprezo, o que me fazia querer provocá-la cada vez mais.

Hoje, por algum motivo, saí para fumar, camisa entreaberta, sem pressa, no bolso do casaco um isqueiro que ganhei de um homem que hoje está morto. Costumo fumar sozinho, na escada externa ou entre os andares. A cidade acalma quando passa da meia-noite.

Mas dessa vez o som me para .Vozes,vozes demais

No terceiro andar , as vozes me chamam,primeiro pela vibração, e então eu ouço.

Ele. Um homem pequeno, mesmo que fisicamente não seja. Um daqueles que pensa que ainda tem direito sobre algo que perdeu por negligência.

Fala alto,súplica,argumenta e depois acusa,como se fosse direito dele ferir porque foi ferido.

Ela tenta subir,fugir,mas ele insiste, segue, encosta ,não com força, mas com posse,ele stá perto demais,segura o braço dela,fala coisas que soam como súplica, mas cheiram a ameaça. O tipo de voz que já ouvi antes,nas ruas,em negociações, em becos,sempre escuto isso em meu "serviço ".

Mas ela… ela está firme. E isso me dá raiva.

Porque ela não deveria ter que estar firme,deveria estar segura.

Desço um degrau,devagar,sem barulho,mas o suficiente para ele saber que não está mais sozinho com ela. Margo me vê primeiro, há tensão no corpo dela,mas também alívio.

Ele pergunta quem sou. Eu não respondo com o que ele espera, ele congela é o tipo de homem que só conhece a sua força quando não há outro mais forte por perto. Ele tenta manter sua voz firme, falha.

— Sai daqui. digo

Uma tentativa falha argumentar, claro,eles sempre tentam, mas quando digo que agora é entre ele e eu, ele entende.Não porque eu grito. Eu nunca grito, mas porque cada palavra minha carrega algo que ele reconhece.Peso, promessa, perigo.

Ele desce as escadas sumindo como fumaça

E fico ali, com ela.Margo,ela treme, mas não desaba.

Se segura, como sempre fez. Como se não soubesse como é ser amparada. Como se ninguém nunca tivesse dito que ela podia cair. Há algo de feroz e calado nela que me atrai mais do que deveria

Quero dizer algo,tocar,mas me contenho , entrego meu casaco depositando em seus ombros, apenas isso.

Relutante ela aceita

—Vai entrar?

Ela faz que sim , quase sem som.E antes que o silêncio nos leve de volta ao silêncio habitual ,digo

— Se ele aparecer de novo… você me chama.

Não estou oferecendo ajuda. Estou dizendo um fato.

—Obrigada - ela responde fechando a porta

Mas eu sei que ela ainda está encostada do outro lado, do mesmo jeito que eu estou aqui.E mesmo com o cheiro do cigarro que nem acendi, tudo que sinto é ela com meu casaco no corpo e meu nome, talvez, pela primeira vez, na cabeça dela.

E pela primeira vez em muito tempo...

Sinto que a noite não é vazia.Porque ela existe nela.

E eu quero mais....

Mais que protegê-la.Mais que entender seus silêncios.Quero descobrir o som da respiração dela quando não está com medo.

Quero ver o que acontece quando ela finalmente para de fugir......

Quero......possui-la......

E, se tiver sorte.....quero estar ali quando ela perceber…que eu não a vi por acaso,e mesmo sem saber eu a estava procurando.

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