São quase onze e meia da noite. O vento de São Petersburgo corta o rosto como pequenas lâminas, os meus ombros doem de carregar a bolsa o dia inteiro, a cabeça lateja de tantos ruídos empurrados goela a baixo ao longo do dia. Volto do trabalho arrastando os pés como sempre, o meu corpo inteiro pulsa de cansaço. Tudo o que eu quero é a minha cama, meu silêncio; estou a meia quadra do prédio quando vejo ele, justo ele. Raul, estacionado como um erro antigo no meio da calçada, aquele mesmo casaco escuro, cabelo desalinhado de propósito, o olhar que mistura saudade com autopiedade, um olhar que eu conheço bem demais. Um olhar que já me manipulou mais vezes do que deveria.
— Margô
A voz dele, a mesma voz que um dia me convenceu a ficar quando eu já devia ter ido. A voz que me prometeu exclusividade e dividia a cama comigo e com outras bocas ao mesmo tempo.
Viro o rosto, finjo não ouvir, a cada passo mais rápido, ele me segue como um vulto.
— Margô, por favor só quero falar com você
Meu estômago vira, aquele "por favor" sempre vinha antes da culpa, antes da voz baixa, antes das tentativas de reescrever a história.
Chego as escadarias do prédio subindo apressadamente ele sobe logo atrás de mim.
—Espera, eu tentei te ligar, você sumiu...não me responde.
—Tem um motivo
—Você não pode simplesmente desaparecer! A gente…a gente tinha uma história!
—Falou certo, tínhamos!
— Margô! porra fala comigo. Eu errei eu sei, mas você também não era perfeita.
Meu sangue ferve , eu rio, um riso seco, amargo. Subo o segundo lance de escadas tentando andar o mais rápido que consigo
— Não era perfeita? Você que cometeu o erro e vem-me dizer sobre ser perfeito?
—Você me ignorava, vivia no seu mundo. Aquilo não foi… não foi real. Não conta daquele jeito
Chego no último lance de escadas do meu andar, a raiva-me consome, paro e viro-me de repente, fazendo ele parar dois degraus abaixo de mim.
— Você me traiu! Com a garota que um dia eu chamei melhor amiga, no nosso apartamento, na nossa cama! E agora quer discutir o que "conta"? Não seja cínico Raul.
A expressão dele muda, o lábio inferior treme. Ele não esperava que eu dissesse isso em voz alta, nem eu.
— Não começa com isso- ele rosna e tenta uma justificativa — Você tem ideia de como tem sido para mim desde então?
— Eu não ligo!
Dou mais dois passos quase acabando as escadas e chegando ao corredor.
— Você acha que é a única que sofreu? Eu perdi você também!
— Você não me perdeu, você me jogou fora, traiu a minha confiança
— Porque você vivia fechada! Surda para mim, pro mundo!
Ele está gritando agora, e então ele empurra-me contra a parede com força, um misto de raiva e desespero, as mãos apertando os meus ombros e o rosto perto demais.
—Você me enlouquece Margô. Você pensa que é melhor que todo o mundo agora, mas você ainda é minha e vou deixar claro isso para você.
— Me solta- digo seca, o gosto do medo sobe pela garganta
— Acha mesmo que poderia se esconder para sempre? vou-te ensinar a não fugir de mim novamente!- diz Raul com agressividade.
E então ele aparece, Dmitry, no topo da escadaria, emergindo do corredor escuro como uma sombra sólida, não diz nada, só olha, um olhar fixo, frio, imóvel, como se fosse entalhado em gelo. Ele desce um degrau, só um, mas o mundo parece inclinar com ele.
Raul me solta como se tivesse sido queimado. Dmitry não fala nada, não precisa, o rosto é uma máscara esculpida em pedra. Mas os olhos.....Os olhos dizem tudo, "não toque nela, nunca mais".
— Quem é você?- Raul desafia, mas a voz falha no fim.
Dmitry desce mais um degrau, cruza os braços, o silêncio pesa.
— Saia daqui- diz por fim, a voz é baixa, cada sílaba parece arrastar uma ameaça oculta.
— Isso é entre mim e ela- insiste Raul, já sem convicção
— Agora é entre mim e você
A forma como Dmitry diz isso não é teatral, não é bravata é factual.
Raul recua,os ombros tensos, os olhos arregalados. Por um instante, parece que vai tentar mais uma palavra, mas então vira e desce as escadas, sumindo como o erro que ele é.
Fico ali,imóvel,Dmitry aí da me observa, seu olhar não tem julgamento, nem pena,só constatação.
Ele se aproxima devagar, como se eu fosse um animal ferido, meu braço ainda dói. Ele ainda me observa.
—Você está bem? - pergunta sem emoção aparente, mas com algo por baixo da superfície, como uma corrente escondida sob um lago congelado.
Assunto, quase não consigo falar.
—Sim...agora estou
Elw faz que sim com a cabeça.Depous como se fosse a coisa mais natural do mundo , estende o casaco que trazia dobrado sobre o braço. Eu hesito
— Está tremendo- diz sem me dar escolha
Aceito,é quente , tem o cheiro dele, fumaça, hortelã, e alguma coisa perigosa.
—Vai entrar?
—Vou - digo com um aceno sutil
E antes de ir ele diz
—Se ele aparecer de novo....você me chama
Não é uma pergunta,nem um pedido , é uma ordem, baixa quase cuidadosa.
—Obrigada....- digo entrando em meu apartamento e fechando a porta.
Fico ali por longos minutos com o casaco apertado no peito. E pela primeira vez em muito tempo,me sinto segura, assustada e.....estranhamente...viva.
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Atualizado até capítulo 38
Comments
Carlos Vazquez Hernandez
Recomendando a todos.
2025-06-12
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