O luto de uma mulher que ainda está viva

O silêncio que se instalou na casa depois da partida de Roberto não trouxe paz. Trouxe vazio. Um peso incômodo que Helena sentia todas as manhãs ao abrir os olhos, lembrando que estava sozinha. Não havia mais ninguém para dividir a rotina, as contas, as birras, o medo.

Agora era só ela.

Só ela para alimentar, acalmar, educar, suportar. Só ela para proteger Alice — e ao mesmo tempo se proteger de Miguel, que cada vez mais se tornava imprevisível.

Não demorou para as primeiras recusas surgirem. Quando Helena tentou encontrar alguém para ficar com as crianças e, talvez, voltar a trabalhar por meio período, ouviu o que mais temia:

— Com esse comportamento, dona Helena, eu não consigo. Ele é muito agressivo. Quase mordeu a minha filha!

Outras tentativas também falharam. Babás desistiam no primeiro dia. Algumas nem voltavam para buscar o pagamento. O olhar de julgamento estava em todos os cantos: nas vizinhas, na diretora da escola, até em familiares distantes que sumiram depois do abandono de Roberto.

A escola, que deveria ser um espaço de apoio, se tornava um novo campo de batalha. Miguel batia em colegas, desafiava professores, se recusava a seguir regras. Recebia bilhetes quase todos os dias, e Helena sentia que estava sempre com um pedido de desculpas atravessado na garganta.

— A senhora precisa tomar uma providência, dona Helena — dizia a coordenadora, com a voz dura, como se ela já não estivesse tentando de tudo. — Miguel está colocando em risco a integridade dos outros alunos.

Ela sentia a garganta secar toda vez que ia buscá-lo. Nunca sabia se encontraria o filho isolado no pátio, em castigo, ou dentro da sala da direção. A fila para o neurologista ainda não andava. Nenhum tratamento, nenhuma resposta. Apenas o peso da dúvida e o medo constante de não estar fazendo o suficiente.

Mas o que mais dilacerava Helena era ver Miguel se voltar contra Alice.

Ele não aceitava o carinho dela, não dividia brinquedos, e às vezes parecia irritado só com a presença da irmã.

— Você é chata! Some daqui! — ele gritava, empurrando Alice com força, fazendo-a cair no chão.

A menina chorava, sem entender. E Helena corria para separar, proteger, consolar.

— Miguel, por que você bateu nela?

— Porque ela estava me olhando! — ele gritava, com os olhos arregalados de raiva.

Não havia lógica. Não havia motivo. Mas havia dor. Muita.

Era como viver dentro de uma tempestade que nunca passava.

À noite, enquanto os filhos dormiam, Helena chorava baixinho no travesseiro. Sentia-se afundar. Carregava a culpa que o ex-companheiro havia deixado como herança: "Você estragou seu filho." Era como se essa frase ecoasse todos os dias, mesmo quando ela tentava calar o mundo com orações sussurradas.

Ela não se permitia desabar durante o dia. Precisava ser forte. Precisava ser o pilar. Mas por dentro, estava em pedaços.

Era um luto silencioso: o luto por si mesma. Pela mulher que deixou de ser. Pela profissional que teve que abandonar. Pela amiga que sumiu. Pela esposa rejeitada. E, em certos dias, até pela mãe que gostaria de ser, mas sentia que estava falhando.

Ainda assim, mesmo no fundo do poço, ela acordava. Todos os dias.

Fazia o café da manhã, penteava os cabelos de Alice, tentava convencer Miguel a colocar o tênis, a escovar os dentes, a não gritar.

E seguia.

Porque mesmo sem ninguém, mesmo sem força, mesmo sem fé, ela era mãe.

E isso bastava para não desistir.

Nos últimos meses, a solidão de Helena foi ganhando novas camadas. Não era apenas a ausência de apoio do pai de seus filhos, nem o olhar de julgamento da escola. Era também a crescente hostilidade que se instalava no lugar onde ela deveria se sentir mais segura: sua própria rua.

O comportamento de Miguel piorava a cada semana. A qualquer distração, bastava um descuido e ele já estava fora de casa. Pulava o portão, corria pela calçada, às vezes cruzava a rua sem olhar para os lados. Certa vez, quase foi atropelado por um carro. Helena correu, gritando seu nome, com o coração na boca, enquanto o motorista a olhava com indignação.

— É um absurdo deixar uma criança assim solta! — gritou o homem antes de seguir seu caminho.

Naquela noite, ela não conseguiu dormir.

E não era um episódio isolado. Miguel fugia com frequência. Quando não corria para a rua, gritava com os vizinhos, batia palmas nos portões, chutava plantas, bagunçava lixeiras.

Logo, começaram as reclamações. Sempre havia alguém batendo palmas no portão.

— Dona Helena, mais uma vez seu filho chutou o portão da minha casa.

— Ele jogou pedra no meu cachorro.

— A senhora precisa fazer alguma coisa. Isso já passou dos limites.

Cada palavra era como uma nova ferida no peito de Helena. E ela não sabia mais como se defender. Porque, por mais que tentasse explicar, ninguém queria entender.

— Eu estou tentando... — ela dizia, com a voz embargada, os olhos cheios de lágrimas que ela se forçava a não derramar ali, diante de olhos tão frios.

Os vizinhos não viam suas madrugadas em claro, os braços doloridos de tentar segurar Miguel nas crises, os bilhetes da escola, os “não temos vaga” das clínicas, a fila do SUS que parecia nunca andar. Não viam sua exaustão física, emocional e espiritual.

Só viam um menino “malcriado”. E uma mãe “incapaz”.

Às vezes, quando a casa finalmente se calava, depois de tantas lutas com os filhos, Helena se ajoelhava no canto da sala, de onde via a luz da rua atravessar a cortina, e chorava.

Chorava como uma filha que já não sabia mais o que pedir.

— Meu Deus... onde foi que eu errei? — sussurrava entre soluços. — Por que eu? Eu nunca fui rebelde, nunca fui ingrata... sempre tentei seguir o que o Senhor me ensinou... Por que meu filho sofre assim? Por que eu tenho que ver tudo isso sozinha?

Ela não queria um milagre extraordinário. Só queria uma resposta. Uma mão estendida. Um descanso.

Mas tudo que encontrava era julgamento.

O corpo doía. A cabeça latejava. E, por dentro, um buraco crescia. Um buraco de silêncio, de medo, de angústia. Ela se sentia invisível, como se estivesse vivendo uma dor que ninguém mais via.

O nome disso era esgotamento. E estava consumindo Helena dia após dia.

Mesmo assim, ao amanhecer, ela secava as lágrimas, penteava os cabelos, vestia um sorriso frágil e seguia mais um dia como se estivesse inteira.

Mas só ela sabia: estava remendada de orações, sustentada por uma força que nem entendia mais de onde vinha.

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Comments

Fatima Azevedo

Fatima Azevedo

coitada só Deus pra dá forças a ela. é triste ter um filho assim sem ajuda de ninguém. o meu filho era quase assim quando pequeno eu tive que separar ele da irmã pra não se matarem. hoje é tá com 44 anos doente dá mente tá com esquizofrenia.

2025-07-21

4

Claudia Martins

Claudia Martins

Ah! Autora me identifiquei com esse capítulo. Antes de ter o diagnóstico que meu filho é autista, passei por essa provação. Após o diagnóstico e com ajuda técnica ( psicológica e fonoaudiológica) e os cuidados que foram ensinadas pelos profissionais, estamos aprendendo a lidar com meu filho. Depois da medicação e terapia, a melhora é significativa!

2025-07-06

1

marluce afleite

marluce afleite

O pai das crianças é obrigada a ajudar. Vai a justiça!

2025-07-09

0

Ver todos
Capítulos
1 As marcas de um começo difícil
2 Um milagre chamado Miguel
3 O segundo presente: Alice
4 Quando tudo começou a rachar
5 O luto de uma mulher que ainda está viva
6 O diagnóstico e o início da luta solitária
7 O diagnóstico e o início da luta solitária
8 O começo do tratamento e o peso de tudo
9 Quando a força parece acabar
10 A receita da esperança
11 A receita da esperança parte 2
12 Os caminhos, novos respiros
13 Encontros que curam..
14 O Passado de Mauro: Descobrindo Caio e Redefinindo o Amor Paterno
15 o início de uma admiração ou algo mais...
16 O aniversário de Eloísa
17 Quando os olhos falam primeiro
18 Quando o amor escolhe florescer
19 Quando é preciso fechar ciclos
20 As Máscaras Caem
21 No Olhar de Caio
22 cuidando de caio
23 contando as crianças sobre o namoro
24 Vozes que Gritam em Silêncio
25 A Coragem de Quem Já Teve Medo
26 O Peso da Verdade Diante da Lei
27 Um Novo Começo em Um Lugar Chamado Amor
28 Laços Que Se Escolhem
29 Se libertando de um passado Doloroso
30 o calor de um verdadeiro lar...
31 O fim de semana só deles
32 O Mundo de Caio
33 Um Domingo de Reencontros
34 Entre Gritos e Silêncios
35 Um Lar Para o Coração
36 Quando o Coração Grita
37 Onde Moram as Coragens Pequenas
38 Quando o Amor é Posto à Prova
39 Vozes Que Ferem
40 O Preço de Amar
41 A Guarda em Jogo
42 Vozes Pequenas, Verdades Dolorosas
43 Justiça Feita com Verdade
44 Quando a Verdade Acorda o Coração
45 A Angústia da Espera
46 A Voz do Filho, A Força da Verdade
47 Justiça e Proteção
48 Um Novo Começo Para o Amor
49 Laços que se Fortalecem
50 Um Passo Difícil
51 Reconstruções e Reencontros
52 O Casamento de Helena e Mauro
53 Novos Começos, Laços Eternos
Capítulos

Atualizado até capítulo 53

1
As marcas de um começo difícil
2
Um milagre chamado Miguel
3
O segundo presente: Alice
4
Quando tudo começou a rachar
5
O luto de uma mulher que ainda está viva
6
O diagnóstico e o início da luta solitária
7
O diagnóstico e o início da luta solitária
8
O começo do tratamento e o peso de tudo
9
Quando a força parece acabar
10
A receita da esperança
11
A receita da esperança parte 2
12
Os caminhos, novos respiros
13
Encontros que curam..
14
O Passado de Mauro: Descobrindo Caio e Redefinindo o Amor Paterno
15
o início de uma admiração ou algo mais...
16
O aniversário de Eloísa
17
Quando os olhos falam primeiro
18
Quando o amor escolhe florescer
19
Quando é preciso fechar ciclos
20
As Máscaras Caem
21
No Olhar de Caio
22
cuidando de caio
23
contando as crianças sobre o namoro
24
Vozes que Gritam em Silêncio
25
A Coragem de Quem Já Teve Medo
26
O Peso da Verdade Diante da Lei
27
Um Novo Começo em Um Lugar Chamado Amor
28
Laços Que Se Escolhem
29
Se libertando de um passado Doloroso
30
o calor de um verdadeiro lar...
31
O fim de semana só deles
32
O Mundo de Caio
33
Um Domingo de Reencontros
34
Entre Gritos e Silêncios
35
Um Lar Para o Coração
36
Quando o Coração Grita
37
Onde Moram as Coragens Pequenas
38
Quando o Amor é Posto à Prova
39
Vozes Que Ferem
40
O Preço de Amar
41
A Guarda em Jogo
42
Vozes Pequenas, Verdades Dolorosas
43
Justiça Feita com Verdade
44
Quando a Verdade Acorda o Coração
45
A Angústia da Espera
46
A Voz do Filho, A Força da Verdade
47
Justiça e Proteção
48
Um Novo Começo Para o Amor
49
Laços que se Fortalecem
50
Um Passo Difícil
51
Reconstruções e Reencontros
52
O Casamento de Helena e Mauro
53
Novos Começos, Laços Eternos

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