Quando tudo começou a rachar

O tempo passou, mas os comportamentos de Miguel não melhoravam — ao contrário, se intensificavam. As birras eram diárias, as explosões de raiva surgiam por motivos mínimos, e a convivência com a irmã se tornava cada vez mais difícil. Miguel gritava, empurrava, chutava. Bastava Alice chegar perto de um brinquedo seu para ele reagir com fúria.

Helena tentava de tudo. Conversava, acalmava, punia, colocava de castigo. Lia artigos, procurava vídeos de psicólogos na internet. Nada parecia funcionar. E, à medida que ela se desesperava em busca de soluções, crescia também o abismo entre ela e Roberto.

— Você não sabe impor limites, Helena. É isso. Ele faz o que quer porque você deixa! — acusou ele, numa noite de sábado, após mais uma cena em que Miguel gritava com os avós durante um almoço de família.

Helena, esgotada, segurou o choro.

— E o que você faz, Roberto? Além de apontar o dedo pra mim? Eu estou com eles todos os dias. É comigo que ele grita, que esperneia, que se joga no chão. Eu estou tentando, mas sozinha!

— Sozinha? Ah, não vem com essa. Eu trabalho o dia inteiro pra sustentar essa casa! O mínimo que espero é chegar e encontrar um pouco de paz. Mas não! Chego e tem gritaria, criança malcriada e você passando a mão na cabeça dele.

— Você não entende! — gritou Helena. — Não é só malcriação! Tem algo errado! Eu conheço o meu filho!

— Tem algo errado sim: a forma como você o educa. Você estragou esse menino com tanta superproteção.

As palavras dele foram como estilhaços cravados no peito. Helena não respondeu mais. Apenas se recolheu ao quarto, sentindo o peso do mundo nas costas. O silêncio da noite foi interrompido apenas pelos soluços abafados dela, tentando não acordar os filhos.

No dia seguinte, sem dizer nada ao marido, ela levou Miguel ao pediatra.

— Ele é muito agitado, doutor... Mas não é só isso. Ele explode. Não obedece. É como se ele vivesse em constante irritação. Já tentei de tudo. Estou... exausta — confessou.

O médico a ouviu com atenção e, após algumas perguntas, disse:

— Pode ser algo mais complexo. Você já considerou levá-lo a um neurologista infantil ou a um psicólogo? Existem transtornos que se manifestam com esse tipo de comportamento. Não é culpa sua, Helena. Mas é importante investigar.

Essas palavras foram como um fio de luz em meio à escuridão.

Ela não era louca. Não era fraca. E talvez, só talvez, não fosse culpada.

Nos dias seguintes, Helena iniciou uma jornada silenciosa. Ligou para clínicas, pediu indicações, leu sobre transtornos comportamentais. E, pela primeira vez, viu entre as descrições algo que se parecia com o que vivia em casa: Transtorno Opositivo-Desafiador (TOD).

Ainda não havia um diagnóstico. Mas havia um caminho. Um passo em direção ao que ela mais desejava: entender seu filho para poder ajudá-lo.

Mesmo que ninguém mais quisesse caminhar com ela.

A espera pelo diagnóstico parecia interminável. Já fazia mais de um ano desde que Helena colocara o nome de Miguel na fila do neurologista infantil da unidade de saúde. Toda vez que ligava para se informar, ouvia a mesma resposta seca e impessoal:

— A senhora ainda está na fila. Assim que surgir uma vaga, entraremos em contato.

Enquanto isso, os dias se repetiam em um ciclo exaustivo de crises, lágrimas, gritos e silêncio. Miguel continuava com o comportamento cada vez mais difícil de controlar. Alice, mesmo pequena, já percebia os ambientes carregados, os olhares pesados, os sussurros entre os adultos.

Dentro de casa, o clima era de guerra.

As brigas entre Helena e Roberto se tornaram parte da rotina. Já não havia mais diálogo, apenas acusações.

— Você mimou esse menino desde que nasceu! — ele gritava. — Agora aguenta! Isso é o que dá tratar criança feito príncipe!

Helena, cansada, contra-atacava:

— Isso é sério, Roberto. Ele não é só agitado. Pode ser algo neurológico! Eu li sobre isso, ele tem todos os sinais... Pode ser Transtorno Opositivo-Desafiador!

Roberto franziu a testa, rindo de forma amarga:

— Ah, claro. Agora tudo tem nome, né? Transtorno disso, síndrome daquilo... Isso é desculpa sua! A culpa é sua, sim! Você sempre foi doente, teve esse problema nos ovários, ficou tomando remédio o tempo todo… Isso aí é resultado do que você passou. Miguel nasceu assim porque você estragou ele ainda no útero!

As palavras foram um soco. Um corte profundo. Helena sentiu o chão sumir sob os pés.

Ela chorou. Gritou. Mas Roberto estava cego pela própria frustração.

— Eu não aguento mais viver nesse inferno — disse ele, numa noite em que Miguel teve mais uma crise violenta, quebrando o controle remoto e se jogando no chão, inconsolável.

— Roberto… por favor, eu só preciso de ajuda! Eu tô tentando, mas é muita coisa... Eu não consigo mais sozinha…

— Sozinha? Você já está sozinha, Helena. Eu só tô aqui de corpo. Minha mente já foi embora faz tempo. Toda vez que chego em casa, parece que estou entrando num campo de batalha. Eu só queria um pouco de paz! Queria uma casa onde eu pudesse descansar. Não dá mais pra viver com esse menino assim.

E foi naquele instante, com as palavras cuspidas entre os dentes, que ele soltou a frase que ecoaria na memória dela por muito tempo:

— Antes que eu faça uma besteira... antes que eu acabe machucando esse menino de verdade... eu prefiro ir embora. Recomeçar. Sumir disso aqui.

Helena gelou. Uma mistura de medo, alívio e desespero percorreu sua espinha. Ela soube que havia chegado o fim.

Roberto arrumou uma mochila pequena, saiu sem olhar para trás e não voltou.

Não houve divórcio formal. Eles nunca haviam oficializado o casamento. Apenas dividiram a mesma casa, o mesmo teto, o mesmo sonho — até ele se despedaçar.

No dia seguinte, Helena contou para Miguel que o pai havia viajado. Ele não perguntou muito. Já parecia sentir, na sua curta idade, que a casa tinha mudado para sempre.

E naquele silêncio que seguiu a saída de Roberto, Helena se viu sozinha. De verdade. Sem amor, sem ajuda, sem respostas.

Mas com um menino que precisava dela como nunca.

E uma missão: lutar até o fim para descobrir o que havia por trás de tanto sofrimento.

Mesmo que o mundo insistisse em culpá-la por tudo.

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Comments

Di Rocha

Di Rocha

coitada da Helena realidade de muitas mães sempre são culpadas por tudo que acontece com os filhos

2025-06-04

1

Susana Amor

Susana Amor

sempre assim o pai não suporta a realidade, coitada da mãe que lute😔

2025-06-05

1

Helena Barbosa

Helena Barbosa

Uma triste realidade para muitas mães😢

2025-06-05

1

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