Cicatrizes Invisíveis
O silêncio do consultório era quase ensurdecedor. Helena encarava o relógio de parede enquanto a médica organizava papéis sobre a mesa. Já havia decorado cada segundo daquele ponteiro torturante. Dez minutos de atraso, vinte e dois minutos de tensão acumulada no peito.
“Você tem síndrome dos ovários policísticos, Helena. Isso pode dificultar uma gravidez.”
As palavras caíram como pedras em um lago tranquilo, espalhando ondas de frustração que Helena tentava conter havia anos. Ela apenas assentiu, sem força para reagir, como se já esperasse aquele veredito. No fundo, sabia. Seu corpo gritava há tempos em sinais que ela insistia em calar com esperanças e promessas vazias de um "talvez no próximo mês".
Ela saiu da clínica com um envelope de exames nas mãos e um vazio no peito que não soube nomear. Na calçada, olhou o céu cinzento de fim de tarde como quem procurava respostas entre as nuvens. O mundo seguia indiferente às suas dores — buzinas, passos apressados, casais de mãos dadas. Ela estava só. Mais uma vez.
Nos anos seguintes, Helena viveria uma rotina de consultas, ultrassons, medicações, chás naturais, simpatias e orações. Um ciclo de esperanças renovadas e desilusões amargas. Cada menstruação que vinha era como um luto silencioso. Ela chorava escondida no banheiro, depois sorria na frente da família, dizendo que “ainda não era o momento”. Mas no fundo, cada vez que ouvia um bebê chorar em algum corredor de hospital, sentia o útero implorar pelo que a natureza parecia negar.
O marido, Roberto, tentou apoiar no começo. Fazia piadas para aliviar a tensão, dizia que tudo ia se resolver. Mas com o tempo, sua paciência foi se esgotando. Não comparecia mais às consultas. Evitava o assunto. E quando falava, vinha sempre com um tom que misturava cansaço e crítica:
— Talvez a gente devesse parar de forçar. Vai ver... não é pra ser.
A frase que mais doeu veio numa noite de domingo, após uma discussão. Helena mencionou que estava tentando uma nova clínica.
— Você quer tanto esse filho, mas será que já pensou se seu corpo não é capaz disso?
Ela não respondeu. Foi até o quarto, trancou-se e chorou como uma criança. Pela primeira vez, não chorava apenas por não conseguir engravidar — chorava porque estava começando a se perder de si mesma. Em algum ponto entre os exames e as esperas, deixou de ser Helena. Era só um corpo em guerra.
O tempo passou, os exames se acumulavam numa pasta que ela escondia no fundo do armário. A fé, antes vibrante, foi se tornando um sussurro. Helena se tornou perita em sorrir para os outros enquanto desmoronava por dentro. Evitava festas de chá de bebê, bloqueava conhecidos nas redes sociais para não ver fotos de barrigas crescendo. Começava a acreditar que não havia lugar para ela na maternidade.
Até que, um dia, o atraso veio. Helena não se permitiu acreditar de imediato. Esperou dois dias. Depois quatro. Ao sétimo dia, foi à farmácia quase se escondendo. Chegou em casa com a mão trêmula e os olhos vazios, como quem carrega uma bomba prestes a explodir. Fez o teste e, pela primeira vez, viu aquelas duas linhas que pareciam impossíveis. Não chorou. Não gritou. Sentou no chão frio do banheiro e ficou ali por longos minutos, em silêncio.
Depois de tudo, ainda havia um milagre para ela.
Mas ela não sabia que, junto com aquele milagre, viriam outras marcas. Marcas invisíveis, mas profundas. Marcas que nenhum teste de farmácia seria capaz de prever.
A igreja era pequena, simples, com bancos de madeira e janelas sempre abertas para deixar entrar a brisa da manhã. Helena sentava-se quase sempre no mesmo lugar — terceira fileira, lado esquerdo — com as mãos entrelaçadas no colo e os olhos fixos no altar como quem esperava uma resposta vinda do céu. Não era uma mulher de fé vazia, daquelas que só aparecem aos domingos. Não. A fé dela era feita de vigília, de joelhos no chão, de lágrimas no travesseiro. Era uma fé cansada, às vezes trêmula, mas ainda viva.
— Senhor… por que comigo?
Quantas vezes ela repetiu essa pergunta em silêncio? Enquanto lavava a louça, enquanto esperava os exames ficarem prontos, enquanto deitava à noite e fingia estar em paz. Helena buscava um sentido, uma direção, qualquer sinal. Muitas vezes saía da igreja com os olhos marejados e o peito mais pesado do que antes. Mas voltava. Sempre voltava.
Nas vigílias de oração, ela era uma das últimas a ir embora. Dobrava os joelhos, abaixava a cabeça e murmurava entre soluços:
— Me dá forças, meu Deus. Não me deixa desistir. Me dá um filho… só um…
Não orava por riqueza, sucesso ou estabilidade. O pedido era sempre o mesmo. Um filho. Um coraçãozinho batendo dentro de si. Um motivo para não se sentir falha. Era como se quisesse provar ao mundo — e a si mesma — que era capaz de gerar amor em carne e osso.
Em casa, montou um pequeno altar ao lado da cama. Uma bíblia aberta no Salmo 113:9, um terço pendurado, e uma vela branca que acendia todas as noites. Às vezes, deixava cartas escritas à mão para Deus. Páginas manchadas de lágrimas onde ela contava tudo: as esperanças, os medos, a raiva e até os momentos em que pensava em desistir.
Certa manhã, após mais um resultado negativo, ela chegou à igreja mais cedo. Sentou-se sozinha no altar vazio e falou alto, sem vergonha:
— Eu já fiz tudo. Remédios, exames, tratamentos… Mas nada acontece. E se isso for tudo o que a vida me reservou? E se eu tiver que aceitar?
O eco da sua própria voz a assustou. Pela primeira vez, Helena verbalizou o que tanto temia: a possibilidade de nunca ser mãe. E naquele instante, sentiu um vazio tão grande que chegou a pensar que a fé também a havia abandonado.
Mas foi nesse dia, justamente nesse, que uma senhora se aproximou dela no fim do culto. Uma mulher de cabelos brancos, mãos enrugadas e olhos serenos. Sem saber nada da sua história, apenas disse:
— O que é seu, o céu já marcou. Mas antes do milagre, vem o deserto. Aguenta firme, filha. Deus escuta até os silêncios.
Helena sorriu com os olhos marejados. Não sabia o nome da senhora e nunca mais a viu depois daquele dia. Mas guardou aquela frase como um bilhete do céu.
Nos meses seguintes, sua rotina seguiu a mesma. Igreja, exames, lágrimas e orações. Mas algo havia mudado. A revolta deu lugar a um tipo de esperança mais madura. Uma esperança que não gritava, mas resistia. Ela começou a cuidar mais de si — caminhadas ao pôr do sol, chá de camomila antes de dormir, menos cobranças, mais silêncio interior.
Num domingo, durante o culto, ela fechou os olhos e disse:
— Deus, se for da tua vontade que eu seja mãe, que seja no teu tempo. Mas se não for, me ensina a viver feliz mesmo assim.
Foi a oração mais sincera que já fizera. Não era mais uma súplica desesperada. Era uma entrega. E foi a partir daquele dia que tudo começou a mudar. Sem ela perceber, o milagre já estava a caminho.
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Atualizado até capítulo 31
Comments
Fatima Deroni Lucas Da Silva
Começando hoje, a ler mais uma história dessa maravilhosa escritora, Quel tenho certeza que vou amar .
2025-06-04
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Susana Amor
começando a ler hj, já estou gostando 🥰👏
2025-06-05
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Nelci Lazzari
lá vamos nós para mais uma aventura com nossa autora querida, estou lendo as 3 que estão em andamento.
2025-06-07
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