O Contraste Urbano

Cheguei em casa tarde. O táxi me deixou em frente ao portão do casarão com o motor ainda quente e o rádio baixo, tocando um jazz suave que não combinava nem um pouco com meu humor.

A fachada moderna da casa parecia mais imponente à noite — vidro, pedra e linhas retas iluminadas por luzes embutidas. Bonita, fria. Tipo de lugar onde o silêncio pesa.

Suspirei e, antes mesmo de girar a chave, mandei mensagem pro Malik e pra Inès.

 “Cheguei viva. Boa noite, meus vagabundos favoritos.” 😘🌙

A resposta do Malik veio quase instantânea:

“Cheguei bem em casa e te desejo uma ótima noite. Dessa vez, vê se sonha comigo, não com o Daniel.” 😈🛏️🌌✨ Beijos.

Sorri, meio sem querer.

“Acho que já dá pra te dar uma chance... brincadeira. 😅😅😅 Ótima noite, Malik. Beijos.” 💋💤

Na sequência, apareceu a notificação da Inès.

“Nada bem! Vou chegar atrasada de novo na Maison Épine, minha chefe vai arrancar meu rim esquerdo.” 😠🕗💀

Ri alto sozinha no hall escuro.

“Você chegou a transar com aquele rapaz?” 🧐💅

“Claro que sim, ele era MUITO goxtosoooo.” 🍆🥴💦

 “COMO você conseguiu? Tava cheio de gente lá, sua louca.” 😱😱😱😱😱

“Dentro do carro dele, né! E você e o Malik, rolou?” 🤔🤔🤔

“Não sou uma vagaba igual a você, né. Não tô pronta.” 🤣🤣🤣🤣

“Periquito de ouro! Preciso ir agora, tô dirigindo, vagaba. Amanhã te conto mais detalhes.” 👆👌💦🍆🍑🤤😘😘

Entrei pela porta rindo sozinha, já imaginando os detalhes sórdidos que ela ia inventar no dia seguinte. Mas parei de rir no mesmo instante.

Minha mãe estava em pé no centro do salão, com os braços cruzados e a expressão de quem já tinha ensaiado a bronca.

A iluminação do teto fazia sombra nas maçãs do rosto dela. Elegante até quando estava furiosa.

— Isso são horas, Renata?

— Mãe, eu te avisei que ia chegar tarde hoje. — larguei a bolsa no sofá e fechei a porta atrás de mim, com aquele toque cuidadoso que a gente aprende só depois de muitos sermões.

Ela se aproximou em silêncio. Senti sua presença antes de vê-la. O olhar de águia pousou no meu rosto, depois ela se inclinou... e me cheirou.

Literalmente. Me cheirou.

— Perfume masculino? — murmurou. — Quem é o seu namorado?

— Não é namorado, é só um amigo. Agora me dá licença, preciso jantar antes de cair dura na cama.

Dei um passo pro lado, mas ela ainda me seguia com os olhos, como se estivesse jogando xadrez comigo. Antes que eu alcançasse a cozinha...

DING-DONG.

A campainha.

Ambas paramos. Troquei um olhar com ela.

— Você tá esperando alguém? — perguntei, mais curiosa do que preocupada.

Ela não respondeu. Só virou de costas, atravessou o salão em passos firmes, a camisola longa arrastando suavemente no piso de mármore.

Abriu a porta.

E ali, de pé na soleira, com o mesmo terno bem cortado que usava nas aulas e um livro de capa dura debaixo do braço, estava ele.

— Professor Adrian?

(...)

Na mesma cidade, dois relógios marcam o tempo de forma diferente.

Para alguns, a noite é descanso — para outros, é alerta.

De um lado, corredores limpos, casas amplas e mensagens recheadas de emojis.

Do outro, escadas rangendo, fumaça no ar, e dívidas penduradas na parede como quadros de um museu sem luz.

Mas o destino, impaciente, começa a misturar as tintas.

E quando cores tão opostas se tocam... é aí que a arte — ou o crime — acontece.

A rua estava vazia, coberta por uma bruma fina. Malik ficou parado ali por um tempo, sozinho na calçada úmida, vendo os três homens desaparecerem como sombras entre os prédios antigos. Só então olhou para o envelope pardo que segurava nas mãos. A ponta amassada. Um toque de sangue seco no canto.

Rasgou com cuidado.

Dentro, uma chave enferrujada de segurança, um pedaço de papel com um endereço impresso e uma única frase, escrita à mão com letra elegante e inclinada:

“Volez le tableau – Femme Solitaire. Vous avez 48 heures. Le vigile vous couvrira.”

(Roube o quadro – Mulher Solitária. Você tem 48 horas. O segurança dará cobertura.)

Malik esfregou o rosto com força. A adrenalina parecia ainda pulsar nos ouvidos.

A carta dobrada ainda estava em sua mão quando Malik passou pelos portões enferrujados do conjunto habitacional. Os prédios do Bloco 4 se erguiam como carcaças cinzentas sob a luz morta dos postes. Eram altos, feios e marcados por grafites desbotados e rachaduras que atravessavam o concreto como veias secas.

No corredor do terceiro andar, a lâmpada piscava intermitente, jogando sombras nervosas nas paredes estreitas.

Um homem dormia sentado ao lado da porta de uma das unidades, a cabeça pendendo para o lado, uma garrafa de plástico amassada ainda agarrada aos dedos. Mais adiante, um grupo de adolescentes ria alto, fumando algo forte que queimava devagar. Um dos garotos olhou Malik de cima a baixo e acenou com o queixo, num cumprimento seco.

De dentro de outro apartamento, um som de música eletrônica escapava abafado. Portas batendo. Um casal discutia em espanhol atrás de uma cortina improvisada.

Malik passou por tudo como um fantasma. Sem julgar. Sem notar. Já fazia tempo que aquilo fazia parte do fundo da sua vida.

Chegou à porta do 307-B. Enfiou a chave, girou.

CLACK.

A maçaneta velha cedeu. O apartamento tinha cheiro de poeira, couro falso e tempo parado.

Era pequeno — um cubo abafado com paredes amarelas descascadas e móveis simples, desalinhados. Um sofá-cama gasto, uma mesa de fórmica com uma das pernas apoiada por um tijolo. Na prateleira, três livros de capa dura, um porta-retrato virado para baixo e um boneco de ação quebrado.

A televisão estava ligada, no volume mais baixo, transmitindo um desenho animado.

— Você ainda tá acordado, Yan? — Malik perguntou, fechando a porta atrás de si.

Do canto da sala, surgiu uma voz sonolenta.

— Amanhã não tem aula... E a mamãe ainda não chegou.

O menino de oito anos tinha os olhos grandes, o cabelo bagunçado e vestia uma camiseta muito maior que ele, provavelmente uma das antigas de Malik.

O mais velho parou por um momento. Respirou fundo. O olhar se desviou — não para esconder raiva, nem para fingir —, mas como quem segura alguma coisa dentro. Uma coisa velha e doída.

— Você já comeu alguma coisa? — perguntou, indo até a cozinha minúscula.

— Comi biscoitos. Aqueles redondos.

Malik abriu o armário. Estava praticamente vazio. Três pacotes de macarrão quebrados, uma lata de sardinha e um copo com farelos de bolacha no fundo. O estômago dele se contraiu com uma pontada seca.

Voltou o olhar para o irmão.

Yan o encarava com uma expressão inocente, de quem não sabia que deveria estar preocupado. Mas Malik sabia. E aquilo era o que mais doía.

— Isso não é comida... — disse baixo. — Vou preparar algo pra nós.

Abriu a geladeira. Luz fraca. Nada. Fechou. Passou a mão no rosto. Pegou o celular, digitou rápido. Parou. Apagou. Suspirou. Depois digitou outra vez:

“Ei, Taoufik. Me faz aquele favor. Uma pizza simples. Te pago quando der. Tô sem nada aqui.”

Esperou. A resposta veio com dois emojis: um de enjoo e um de aperto de mãos. Depois:

“A última, Malik. Tu me deve quatro.”

Malik sorriu com um canto de boca, alívio misturado à vergonha. Digitou apenas:

“Obrigado, irmão.”

Desligou o celular. Sentou no chão da sala com Yan, perto da TV. O menino encostou nele, quase automaticamente, como quem encontra abrigo.

— Vai ser de quê a pizza? — perguntou Yan, animado.

— Surpresa. Mas se tiver queijo, já é um milagre.

O menino riu. Malik olhou para o teto, exausto. Seus olhos ficaram fixos numa rachadura longa que cruzava a laje.

Ele não queria fazer aquilo. Mas aquela chave em seu bolso parecia cada vez mais inevitável.

E ele só tinha 48 horas.

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Comments

lina

lina

🥰🥰🥰😍😍
mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais

2025-05-31

2

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