A Descoberta Promissora

Desci as escadas do meu quarto com passos silenciosos, mas por dentro era um vendaval. As paredes brancas do apartamento pareciam mais frias naquela manhã cinzenta em Neuilly-sur-Seine, um bairro elegante de Paris. Do lado de fora, a garoa caía delicadamente, tingindo a cidade com tons de melancolia. Era 11h26 da manhã, e o ar cheirava a madeira molhada e café passado.

Na metade da escada, encontrei Marie, a funcionária que ajudava com a limpeza, ajoelhada no chão, esfregando o piso com um pano embebido em algum produto tás-tás-francês.

— Bonjour. — ela disse, sem me olhar, a voz gentil como sempre. — O café já está na mesa.

— Minha mãe já foi trabalhar? — perguntei, com a voz mais baixa do que pretendia.

Ela apenas fez um movimento leve com a cabeça e continuou esfregando o chão. Entendi a resposta: minha mãe estava em casa. Suspirei fundo.

Na cozinha, encontrei Célia sentada com a coluna ereta, um ar de ocupação eterna. Na mesa, um espresso pequeno, um prato com dois ovos fritos perfeitamente temperados e uma maçã intacta, provavelmente mais estética do que apetitosa. O laptop diante dela exibia planilhas, e sua mão direita se agitava no ar com o celular preso ao ouvido esquerdo.

— Preciso que você prepare o relatório financeiro urgente. Precisamos apresentar antes da concorrência. Assim teremos mais chances de sermos selecionados. Nossa, é um contrato de dez anos... Se formos selecionados, vamos exportar eventos para o mundo todo.

(Uau, mundo todo é muita coisa.)

Não falei, mas pensei alto o suficiente para que ela erguesse os olhos. Ela sabia quando eu estava debochando, mesmo em silêncio. Me dirigi ao fogão e preparei meu café coado com leite. Detestava aquela máquina café-pellets.

Ela desligou o telefone, me olhou com aquele ar diplomático e disse:

— Au revoir. Bom dia, minha bruxinha. Como anda sua vida artística?

Revirei os olhos e fiz um carão.

— E como anda os negócios, mãe bruxona?

Ela riu, satisfeita com o jogo de palavras.

— Preciso de energias positivas. Estou finalizando um projeto que será grandioso.

— Hum... interessante. — minha voz arrastada deixava claro meu desinteresse.

— Mas me fala da faculdade. Faz muito tempo que não conversamos, bruxinha.

— Hoje eu vou apresentar um trabalho artístico. O professor pediu algo do coração...

— Um minuto, filha. Estou recebendo uma ligação importante.

Ela se afastou com o telefone de novo colado ao ouvido. Soltei um suspiro exagerado.

— Obrigada, mamãe, pela atenção. — falei em voz alta, enquanto revirava os olhos novamente.

Pouco depois, estava na porta de casa esperando Inès. Minha carona de todos os dias e uma das únicas pessoas que me mantinham sã nesta cidade. Desde a minha saída de North-Pólen, fui proibida de dirigir. Algo sobre "má influência da adrenalina". Ainda me dava arrepios pensar nisso.

O carro de Inès parou com suavidade. Ela abriu a janela.

— Bonjour, ma chérie. Pronta pra impressionar Adrian com sua arte?

— Só se ele não estiver de TPM masculina hoje. — Respondi, rindo.

Entramos no carro e seguimos por entre as ruas arborizadas. Ela colocou um disco de jazz moderno, e o som preenchia o espaço entre uma conversa e outra.

— Ainda tá sonhando com o Daniel? — ela perguntou, arqueando uma sobrancelha.

— Não sei se é sonho ou tortura psicológica constante.

— Isso é romântico. — disse com sarcasmo.

— Isso é masoquismo.

Na porta da Faculdade Delacrux des Arts Visuels, ela me deixou e seguiu para o estacionamento. A arquitetura clássica do prédio principal me lembrava aquelas pinturas do século XIX. Tinha um charme decadente.

Na entrada, encontrei Malik. Ele tinha 24 anos, pele negra como a noite sem lua, cabelos raspados nas laterais e um sorriso que iluminava mais que a Torre Eiffel inteira.

— Olá, Renata Ray da arte dramática. — disse ele, brincando.

— Olá, Malik dos raps secretos.

— Dormiu bem ou ficou sonhando com Daniel de novo?

— Dormi mal e sonhei bem. Tem alguma coisa errada nisso.

Rimos. Estávamos nos conhecendo havia três dias. Não havia promessas, apenas encontros, beijos escondidos e um certo fascínio.

Na galeria da faculdade, as obras estavam cobertas com lonas pretas. Inès e eu nos posicionamos diante das nossas. Alunos murmuravam expectativas.

Professor Adrian entrou na sala com sua prancheta, terno marrom e uma câmera pendurada no pescoço.

— Vamos começar. Inès Valois.

Ele puxou a lona. Um corpo grego nu, perfeito... exceto pelo pênis desproporcionalmente grande.

Os alunos tentavam conter o riso.

— Isso diz muito sobre sua personalidade, Inès.

Ela sorriu, nada abalada. Sempre confiante.

— Agora... Renata Ray.

Ele puxou a lona da minha obra.

Era um carro esculpido em camadas de resina e ferro oxidado, os faróis acesos por LEDs e no painel uma cidade vazia. No banco do passageiro, uma figura feminina feita de espelhos rachados. A legenda: "Correndo em linha reta para lugar nenhum."

Houve um silêncio.

Adrian se aproximou, seus olhos fixos.

— Incrível. Um carro, mas não sobre velocidade. Sobre ausência. Sobre Paris e o que ela não consegue preencher.

Inès me cutucou.

— Ele tá caidinho por você. Aposto que vai inventar um projeto só pra passarem mais tempo juntos.

— Para. Ele é meu professor.

— Professores são pessoas também, querida. Pessoas com carências...

Saímos rindo.

Malik nos esperava.

— Estavam falando mal de mim?

— Estávamos planejando sua ruína, claro. — brinquei.

— Então vamos beber algo pra comemorar antes da ruína.

— Minha mãe me mata se eu não chegar no horário.

— Então a gente acelera. — disse ele com um sorriso torto.

Seguimos para uma região subterrânea da cidade, conhecida como "La Tranchée". Um espaço escondido sob os trilhos de um metrô desativado. Motos, carros tunados, garotas com cabelos coloridos, garotos tatuados. Era Undeer City com baguetes.

Meus olhos brilharam. Aquilo pulsava como meu peito nas corridas. Malik notou.

— Você contou sobre... como chama? North-Pólen?

— Sim. Onde o asfalto queimava e a vida era acelerada.

Ele se sentou ao meu lado, em um canto alto com vista para os carros abaixo.

— Eu cresci no 18º distrito. Gueto. Meu pai sumiu cedo. Minha mãe limpava casas. Tive que crescer rápido. Trabalhar cedo. Ganhar respeito. Aqui, esses rachas são minha fuga.

— Sinto muito...

— Não sinta. Isso me tornou quem sou. E olha onde estou. Com você.

Ele me beijou.

Foi suave no início. Depois, urgente. Mãos, suspiros, calor.

Me afastei, com o coração acelerado.

— Está indo rápido demais...

Ele assentiu. Não insistiu.

Me levou de volta pra casa. Nos despedimos com um beijo na testa.

E naquela noite, antes de dormir, sonhei com Daniel. Mas desta vez, ele estava em Paris, dirigindo aquele carro feito de solidão.

(...)

O relógio marcava 23h17 quando Adrian largou a taça de vinho meio cheia sobre o parapeito da janela de seu apartamento, no sexto andar. A cidade ainda respirava abaixo, e as luzes dos carros se misturavam à chuva fina que escorria no vidro. Ele olhou para o celular, hesitou por dois segundos, e então discou.

— Allô? — atendeu Léo com sua voz grave e arrastada.

— Léo, mon ami... — Adrian sorriu, olhando para o nada — …acho que encontrei o que você procurava.

— Seja mais direto. Você sabe que não gosto de suspense.

Adrian se virou, olhando para o mural com fotos de estudantes da Delacrux Arts Visuels.

— Uma artista. Brilhante. Incrivelmente instintiva. Jovem, talentosa... e com um passado interessante. O tipo de arte que você adoraria explorar... e talvez manipular.

Léo silenciou por um instante.

— Nome?

— Renata Ray.

— Ray?

— Sim. Filha da Célia Ray.

A respiração de Léo pesou no outro lado da linha.

— Agora estou ouvindo, Adrian.

Adrian riu baixinho, com um leve brilho de vingança nos olhos.

— Eu imaginei que estaria.

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