Linhas Finas de Uma Mentira

A cidade dormia sob um cobertor pesado de neblina e silêncio, quebrado apenas pelos passos ecoantes de Malik sobre o asfalto úmido. As luzes dos postes piscavam com falhas, lançando sombras intermitentes pelas paredes grafitadas dos becos. Era tarde. Muito tarde. E ele sabia que não devia estar ali.

O caminho era o mais curto entre a estação e seu pequeno apartamento alugado no 18º distrito. Mas também era o mais arriscado. As vielas que cortavam o coração velho de Paris escondiam mais que lixo e ratos — escondiam histórias que não se queria reviver.

Após enviar uma mensagem de texto para Renata, Malik enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta jeans surrada, tentando se aquecer mais do que se proteger. A noite estava gélida, mas sua mente fervia. Pensava em Renata, no jeito como ela sorria com o canto da boca, nos olhos castanhos profundos, na forma como ela não sabia esconder o que sentia. Pensava em como sua vida poderia mudar... se tudo desse certo dessa vez.

Então, do nada, braços o agarraram com violência, puxando-o contra a parede de pedra úmida.

— Opa, opa, sua direita ainda tá ótima, monsieur Malik — disse uma voz rascante, com um sotaque francês puxado, familiar e desagradável.

O impacto do Corpo contra a parede tirou o ar dos pulmões de Malik por um instante. O rosto do agressor surgiu das sombras. Era Djalil, um velho conhecido do gueto — um daqueles “amigos” que sorriem com os dentes, mas mordem com as palavras.

Malik reagiu por puro instinto. O punho direito se fechou e, com força concentrada, acertou o maxilar de Djalil, fazendo-o cambalear um passo para trás.

— Merde! — resmungou Malik, ajeitando a gola da jaqueta. — Droga? Não pode me agarrar assim num beco a essa hora. Tá doido?

Dois vultos emergiram da penumbra atrás de Djalil. Dois caras altos, encapuzados, olhar de predador. Malik deu um passo para trás, o corpo tenso, o olhar se movendo rápido entre os três.

— Sério? Precisa disso? Três caras? — tentou manter a voz firme, mas o medo lhe traía no canto dos olhos.

— Cadê a nossa grana, Malik? — disse Djalil, agora recuperando o equilíbrio e limpando um filete de sangue no lábio. — Já se passaram dois meses. Você sumiu. Acha que esquecemos?

— Calma, cara. Eu disse que ia pagar. Eu conheci uma garota nova... A mãe dela tem dinheiro... — Malik tentava ganhar tempo.

Mas não teve tempo. Um dos capangas lhe cravou o punho no estômago, o suficiente para fazê-lo dobrar os joelhos, tossindo.

— Sim, sim... seus golpes baratos em garotas carentes não tão rendendo, Malik. Ainda faltam 40 mil. — Djalil se aproximou, agarrou-o pela gola, e colou seu rosto no dele. — Quarenta mil. Ou quer que eu desenhe no chão?

Malik tentou se recompor, engolindo a dor com saliva e orgulho.

— Cara... dessa vez vai dar certo. Sério. Ela é diferente.

— Ah, claro. A história de sempre. — Djalil riu. — Vai seduzir a garota e arrancar grana da família. Clássico Malik. O que vai fazer agora, hein? Vai sequestrar a menina?

O silêncio caiu como um trovão.

Por um instante, os três encararam Malik. Ele hesitou. E foi justamente essa hesitação que Djalil soube interpretar como fraqueza.

— Hah... não tem estômago pra isso, Malik. A gente sabe. Você é só um sonhador do gueto com a lábia afiada e a alma mole.

Mas então, com um meio sorriso, Djalil deu um tapinha no rosto dele, como um irmão mais velho encorajando o caçula antes de empurrá-lo do penhasco.

— Mas hoje... hoje é o seu dia de sorte, monsieur Malik.

Ele estalou os dedos. Um dos caras tirou algo do bolso — um envelope grosso.

— Temos um trabalho pra você. Um serviço pequeno, mas que pode pagar uma parte da dívida. Simples, direto, quase elegante. Interessado?

Malik olhou para o envelope, ainda ofegante, a expressão dividida entre medo e alívio. Seus dedos se fecharam devagar em torno do papel pardo. Ele não disse nada. Mas não precisava.

Naquele beco, em meio à garoa da cidade e às promessas não ditas, Malik sabia que acabara de cruzar uma linha. Mais uma vez.

(...)

O som do sino antigo marcava meia-noite em ponto quando Inès Valois empurrou discretamente a pesada porta lateral da Maison Épine. O prédio, de fachada aristocrática e sombras barrocas, parecia adormecido entre os casarões do 9ème arrondissement. Mas lá dentro, sob a luz baixa das arandelas douradas, a noite estava apenas começando.

Ela ajeitou o lenço que escondia seus cachos e amarrou com firmeza o avental de tecido cru, desgastado pelos meses de trabalho noturno. Suas mãos — que mais cedo seguravam pincéis e carvão na aula de escultura — agora percorriam rolos de tafetá, linho e cetim com a destreza de quem já sabia onde estavam os pequenos defeitos e os grandes segredos de uma peça de alta costura.

— Bonsoir, chérie... atrasadinha de novo? — provocou Amadou, o cortador-chefe, um homem imenso com voz de veludo e dedos leves como brisa. Ele lhe ofereceu um sorriso enquanto guiava um pedaço de tule cor de champanhe sobre uma mesa de moldes.

— C’est Paris, Amadou... o metrô decidiu tirar uma soneca no meio da linha. — Inès revirou os olhos com charme. Seu francês era perfeito, mas tinha o sotaque despreocupado de quem cresceu entre línguas diferentes. Ela se posicionou diante da bancada e começou a alfinetar a saia de uma peça que levaria semanas para ser bordada.

O atelier estava em pleno caos elegante: tecidos empilhados em montes vibrantes, manequins com braços tortos cobertos por vestidos em gestação, estojos de pérolas e fios dourados espalhados como tesouros secretos. Um rádio antigo tocava jazz instrumental, e o perfume do incenso de sândalo disfarçava o leve cheiro de cola quente e suor.

A cada passo, Inès tomava cuidado para não deixar cair seu crachá da faculdade, que ficava escondido no bolso do avental. Ninguém ali podia saber que ela era apenas uma estudante — muito menos que sua peça final do semestre havia sido inspirada por um vestido que ela mesma ajudou a montar ali dentro, durante as madrugadas.

Ela se aproximou do manequim onde a estilista-chefe, Madame Lucille, deixara o molde de uma nova criação. Era um vestido negro, esqueleto de algo grandioso, com ombros estruturados e gola alta que lembrava as divas do cinema noir. Inès segurou a manga direita com as duas mãos e, por alguns segundos, ficou parada, observando.

Isso aqui é o meu palco secreto, pensou. É onde posso ser genial... sem ninguém olhar.

— Inès, preciso de você aqui! — chamou Madame Lucille do fundo da sala, com voz cortante. — La cliente libanaise quer ajustes no forro antes do desfile de sábado. E traga o croqui da peça branca também. Aquele que você... sugeriu. A mulher arqueou uma sobrancelha.

Inès sentiu um arrepio. A sugestão que fizera, de forma quase acidental, dias atrás, fora acolhida e transformada em parte da coleção. Mas seu nome não constava em lugar nenhum. Mesmo assim, o orgulho que sentia não cabia no peito.

— Oui, madame! — respondeu animada, e correu até o armário de croquis, seus saltos baixos ecoando pelo piso de mármore envelhecido.

Horas depois, quando o relógio marcava 3h17 da manhã, Inès finalmente se sentou. Seus dedos doíam e os olhos ardiam. Mas ali estava ela, entre sedas e sonhos, segurando uma xícara de chá de jasmim e observando o vestido que ajudara a nascer. O vapor do chá subia em espirais finas, e a sensação era a mesma de quando completava uma obra de arte.

O mundo inteiro poderia me aplaudir agora, pensou, enquanto o coração batia tranquilo no ritmo da costura.

Do lado de fora, Paris dormia em silêncio. Mas dentro da Maison Épine, Inès Valois brilhava, mesmo que ninguém soubesse disso.

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Obrigado por sua leitura.

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Comments

lina

lina

continua continua continua continua continua continua

2025-05-31

1

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