A manhã havia começado como tantas outras no Colégio Internacional Saint Augustine. Os corredores de mármore branco brilhavam sob a luz fria do outono, refletindo os passos apressados e os cochichos abafados de adolescentes envoltos em seus próprios universos. As salas eram climatizadas, os professores exigentes, os uniformes impecáveis. Ali, o prestígio vinha com sobrenomes. E o de Edward Amaral era uma fortaleza entre paredes de vidro.
Ele entrou pela portaria sem trocar palavras com ninguém. Costumava caminhar reto, com os fones desligados nos ouvidos — não por ouvir música, mas por manter a distância. Não era um garoto popular no sentido tradicional. Era temido, admirado e completamente inalcançável. As garotas o viam como um enigma — e os garotos, como uma ameaça que não se nomeava.
Mas naquela manhã, algo desviou sua atenção.
Ela estava parada ao lado do portão lateral. Os cabelos castanhos estavam soltos, despenteados pelo vento, e a mochila parecia pesada demais para os ombros frágeis. Vestia o mesmo uniforme dos outros, mas nele não havia ajuste ou orgulho. Estava grande demais, como se tivesse sido emprestado. A saia longa escondia os joelhos, os sapatos estavam gastos. E o olhar… era o oposto de tudo ali.
Ela não olhava para ninguém. Olhava para o chão. Como quem espera algo ruim acontecer.
— Viu a esquisita nova? — cochichou uma menina, rindo ao lado de um grupo.
— Deve ter vindo de algum abrigo — respondeu outra.
— Ou do lixo.
Risadinhas abafadas. Edward passou por elas como se não tivesse ouvido. Mas ouviu. E viu. Os olhares tortos. As provocações silenciosas. As costas viradas. E a forma como a garota aceitava tudo com a cabeça baixa, como se já tivesse aprendido que lutar era pior.
Na primeira aula, ela entrou atrasada. O professor não reclamou — talvez por pena. Sentou-se na última fileira. Não tinha caderno, nem estojo. Apenas um envelope dobrado que usava como marca-página.
Na terceira aula, alguém derrubou os papéis dela no chão. Sem querer, é claro. Ninguém viu quem foi. Ela se ajoelhou em silêncio para recolher, os dedos tremendo. Ninguém ajudou. Mas Edward observava. O tempo todo.
Durante o intervalo, ela ficou do lado de fora, no banco perto das árvores. Sozinha. Enquanto as outras meninas riam em grupos, e os garotos passavam com olhares zombeteiros, ela comia um pedaço de pão seco que tirou de uma sacola. Sem água. Sem suco. Sem companhia.
E então Edward passou por ela.
Olhou direto. Ela não ergueu os olhos.
Mas alguma coisa apertou no peito dele.
Algo antigo. Algo que não vinha do presente.
**
A semana passou assim.
Ela sempre sozinha.
Sempre quieta.
Sempre alvo de cochichos, piadas maldosas, empurrões discretos nos corredores, olhares de desprezo. Mas nunca revidava. Nunca reclamava. Nunca olhava nos olhos de ninguém. Edward observava cada detalhe, como se a mente estivesse registrando os movimentos de uma peça de xadrez que ninguém mais via.
Na sexta-feira, ele voltou para casa mais cedo que o habitual. O carro o deixou na entrada da fazenda, como sempre. Mas, dessa vez, ele desceu com os punhos cerrados. O céu estava nublado, e o vento trazia o cheiro forte da terra molhada.
Dante estava no campo, supervisionando os cavalos com Noah. Luna costurava algo na varanda com Yara. Gael e Aurora estavam na cidade. Mas Ayla estava ali, regando as plantas no jardim, quando viu o neto chegar.
— Você está com raiva — ela disse, sem desviar o olhar das flores. — Aconteceu algo?
Edward parou. Respirou fundo. Seus olhos estavam sombrios, mas não com ódio. Com indignação.
— Estão maltratando uma menina nova na escola — disse, com a voz baixa.
Ayla virou-se devagar.
— Maltratando como?
— Ignoram. Riem. Empurram. E ela não faz nada. Ela só aceita.
— E o que você faz?
Ele demorou a responder.
— Eu observo.
— E isso resolve?
— Ainda não. Mas vai resolver.
Ayla assentiu. E não perguntou mais nada. Sabia que Edward era como o avô: não se movia por impulso. Quando tomava uma decisão, ela já vinha com consequências.
**
No jantar, ele falou pouco. Comeu menos ainda. Luna percebeu, mas respeitou o silêncio. Dante, no entanto, observava. O filho estava diferente. Carregando algo que não sabia nomear.
Naquela noite, Edward foi até o quarto de Aslan. Encontrou o avô lendo à meia-luz, como fazia todas as noites. Ayla dormia ao lado, exausta.
— Posso entrar?
Aslan ergueu os olhos. Um pequeno sorriso se formou.
— Você nunca pergunta. Claro que pode.
Edward sentou-se na poltrona de couro escuro.
— Existe um tipo de dor que a gente não vê?
— Existe — respondeu Aslan. — A dor de ser invisível. De não ter lugar no mundo.
— Ela tem esse olhar.
— Quem?
— A garota nova. Ninguém a quer ali. Mas ela também não quer estar. Só… sobrevive.
Aslan fechou o livro.
— E por que isso te incomoda?
— Porque me lembra de coisas que não vivi, mas sei. Como se estivesse vendo o início de um vazio que não termina.
Aslan assentiu.
— Então faça o que ninguém fez por mim, nem por você.
Edward olhou para o avô. E entendeu.
**
Na semana seguinte, ele mudou a rotina.
Começou a chegar mais cedo. Passava por ela e dizia “bom dia”. Sem esperar resposta. Quando alguém empurrava os livros dela no chão, ele os recolhia. Quando estavam no refeitório, sentava-se algumas mesas à frente, mas em silêncio, como um escudo não declarado.
Na aula de História, quando a professora propôs duplas, ninguém se aproximou dela. Edward se levantou.
— Posso fazer com você? — disse, de forma calma.
Ela hesitou. Depois assentiu com a cabeça.
E, naquele dia, ele viu um detalhe novo: os olhos dela eram de um verde-acinzentado estranho, como folhas antigas. E carregavam cicatrizes que ele reconhecia.
Cicatrizes de silêncio.
**
Quando voltou para casa naquela sexta, ele entrou pela porta e largou a mochila no chão.
Dante estava na cozinha.
— Como foi a semana?
Edward pegou um copo de água, bebeu inteiro, e respondeu:
— Estou cuidando de alguém.
Dante franziu o cenho.
— Alguém da escola?
— Uma garota. Ninguém gosta dela. Ninguém ajuda. Mas agora eu estou ajudando.
— E por quê?
Edward encarou o pai.
— Porque um dia... ninguém me viu também. E eu sobrevivi. Mas ela não deveria ter que sobreviver. Ela deveria apenas viver.
Dante não respondeu. Mas naquele instante, soube: o legado estava vivo. E estava crescendo.
**
Na varanda, naquela noite, Ayla comentou baixinho com Luna:
— Ele tem olhos antigos. Como os do avô. Mas o coração… é seu.
Luna apenas sorriu. E agradeceu, em silêncio.
Porque a garota do silêncio, sem saber, acabara de ser escolhida por alguém que nunca deixava nada passar despercebido.
E o mundo dela estava prestes a mudar para sempre.
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Atualizado até capítulo 24
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