Sob a Mesma Chuva - Capítulo 4 — Espelhos Rachados

A mesa estava posta com um capricho que só mães sabiam fazer.

Lasanha dourada saindo fumaça, copos de suco natural, uma travessa de salada (intocada por ambos), e Haru com o mesmo moletom velho, cabelo bagunçado, sentando-se com um prato gigante.

Shion parecia deslocado, ainda de jaqueta, encarando o prato como se aquilo fosse uma armadilha.

Mãe do Haru

— "Pode comer, querido, eu fiz com carne mesmo. Sei que esses meninos de hoje têm muita restrição..." — disse a mãe de Haru, servindo-o com um sorriso.

Shion

— "Não, tá tranquilo. Eu como de tudo."

Mãe do Haru

— "Ah, bom saber!" — ela sorriu e se sentou também. — "Então, você e o Haru se dão bem?"

Haru nem olhou. Só mastigava, o olhar perdido na comida.

Shion forçou um sorriso.

Shion

— "Ah, sim! Super. A gente é quase... irmãos."

Haru ergueu uma sobrancelha, sem levantar a cabeça.

Haru

— "Irmãos que se socam, empurram em lixeiras e trocam ofensas diárias. Família tradicional brasileira."

Shion

— "É o jeitinho dele de demonstrar carinho." — Shion rebateu com ironia.

Mãe do Haru

— "Ah, isso é ótimo!" — disse a mãe, toda empolgada. — "Haru anda tão fechado ultimamente... bom ver que ele tem alguém pra conviver. Desde aquele episódio do parque ele nunca mais foi o mesmo."

Shion franziu o cenho.

Shion

— "Que episódio?"

Haru travou o garfo no ar.

Haru

— "Mãe..."

Mãe do Haru

— "Ah, desculpa, filho. É só que ele não fala com ninguém sobre aquilo, sabe? O ataque de pânico, o desmaio, os paramédicos... foi tão assustador."

Shion olhou para Haru. O outro continuou mastigando, agora com mais força. O silêncio dele falava mais do que mil frases.

Mãe do Haru

— "Desde então ele vive com essas olheiras, trancado no quarto. Eu me preocupo."

Shion olhou de novo. Haru parecia... menor. Como se estivesse encolhendo dentro de si mesmo.

Shion

— "Ele parece bem forte agora." — mentiu Shion, tentando desviar.

Mãe do Haru

— "Espero que sim. Você cuida dele, tá?" — disse a mãe, apontando a colher para Shion como quem dá uma missão sagrada.

Shion

— "Cuido sim, dona...?"

Mãe do Haru

— "Tomoko."

Shion

— "Dona Tomoko. Pode deixar."

Haru finalmente olhou para Shion. Um olhar que dizia: "Cala a boca antes que eu jogue esse prato em você."

Quarto de Haru — mais tarde

Shion entrou curioso. O quarto era um verdadeiro santuário gamer: monitores com RGB, teclado mecânico, headset pendurado, pôsteres de jogos e um em especial — um velho jogo de RPG — autografado.

Haru sentou-se e ligou tudo. A sinfonia do PC preencheu o ambiente.

Shion

— "Caramba... isso aqui parece uma nave espacial."

Haru

— "Se fosse, eu já teria deixado esse planeta faz tempo."

Shion observava como se estivesse num zoológico. Haru abriu o jogo, um FPS online com um mapa futurista. Seu nick piscava no topo: "VoidFox".

Shion

— "Esse é o famoso joguinho onde você xinga criancinha e diz que é Deus?"

Haru

— "Esse mesmo. E sim, eu sou Deus aqui."

Haru começou a jogar. Os dedos se moviam com precisão absurda, cada movimento cirúrgico. Shion observava em silêncio, impressionado.

Shion

— "Ok... isso foi tipo... um headshot com ricochete?"

Haru

— "Sim. Eu joguei a granada na parede sabendo que ia rebater e explodir atrás do cara."

Shion

— "Tá. Isso é doentio."

Haru

— "Não é meu único talento."

Shion

— "Sério? Você consegue falar mais de três frases sem querer morrer?"

Haru

— "Depende da companhia."

Shion riu baixo. Depois apontou.

Shion

— "Me deixa tentar."

Haru hesitou.

Haru

— "Você vai estragar meu ranking."

Shion

— "Medo de perder pra mim?"

Haru

— "Medo de ver você andando em linha reta e morrendo pros próprios aliados."

Mas ele soltou o mouse e cedeu.

Shion pegou o headset, colocou e começou a jogar — mal.

Shion

— "CARALHO, DE ONDE ESSE CARA VEIO?!"

Haru

— "Do canto da tela. Que você ignorou três vezes."

Shion

— "Tem um botão pra correr?"

Haru

— "Shift. E para de atirar nas paredes."

Shion

— "Eu tô tentando! Essa mira parece um mosquito com Parkinson!"

Haru suspirou.

Haru

— "Tá. Presta atenção. Aqui: fica nesse canto, mira ali. Quando o cara aparecer, você atira no chão. Vai rebater e..."

BOOM.

Shion

— "EU MATEI ELE??"

Haru

— "Sim. Milagrosamente. E roubando minha tática."

Shion

— "Mano, isso é muito mais difícil do que parece."

Haru

— "Bem-vindo ao meu mundo."

Shion ficou em silêncio. Pela primeira vez, ele viu Haru... brilhar. Ele era outro ali: rápido, sarcástico, confiante.

Shion

— "Você é outro cara quando joga."

Haru olhou de lado.

Haru

— "E você é outro cara quando cala a boca."

Ambos sorriram. Por um momento, sem farpas.

Mas só por um momento.

Shion

— "Ainda sou mais bonito que você."

Haru

— "E eu ainda sou mais inteligente que você. O mundo é equilibrado."

Dias então se passaram...

Segunda-feira — Intervalo, pátio da escola

Shion encostava-se numa das colunas do pátio, uma maçã meio comida na mão e o olhar perdido no nada. Os amigos do time estavam perto, rindo alto e fazendo piadas idiotas.

Haru passava ao longe, como sempre, com os fones no ouvido, moletom cobrindo metade do corpo, a cabeça baixa. Tentando desaparecer no mundo.

Dois garotos do segundo ano — brutamontes sem talento, mas com ego transbordando — viram Haru e se entreolharam com aquele sorriso maldoso.

？？？

— "Olha o zumbi passando..."

？？？

— "Ô nerd, perdeu a tomada, foi?" — um deles cutucou o ombro de Haru, tirando um dos fones.

Haru parou, olhou. Mas não disse nada. Só virou-se de novo para sair andando.

？？？

— "Caraca, ele cheira a quarto escuro e miojo vencido."

？？？

— "Se tacar um controle nele, ele vira chefe de fase secreta."

Os garotos riram alto. Haru apenas continuou andando, mas com o maxilar travado. Aquilo não doía como antes. Doía de outro jeito: por dentro.

Shion viu tudo.

Segurou a maçã com mais força.

Algo incomodava — não os caras. Mas a sensação de ver alguém zombando do "idiota do Haru" e não achar graça.

Um dos amigos de Shion riu também, vendo a cena.

Kauê

— "Esse moleque é uma piada mesmo. Tu viu o roxo no olho dele semana passada? Apanhou de gato morto, certeza."

Joy

— "É. Moleque vive no mundo da lua. Aposto que namora waifu em jogo."

Shion franziu a testa.

Shion

— "Vocês falam como se fossem gênios olímpicos."

Joy

— "Ué, e não somos?" — respondeu um dos amigos.

Shion

— "Vocês jogam futebol como se tivessem duas pernas esquerdas e um neurônio pendurado."

Os amigos riram, achando que era brincadeira.

Mas não era.

Shion largou a maçã no chão e saiu andando na mesma direção que Haru.

Encontrou o outro já sentado no canto mais afastado do pátio, onde ninguém se aproximava. Haru estava com o capuz sobre os olhos, o sanduíche intocado no colo.

Shion parou a dois metros. Ficou ali, em silêncio.

Haru nem olhou.

Haru

— "Vai continuar fingindo que não viu?" — disse Haru, sem erguer os olhos.

Shion cruzou os braços.

Shion

— "Vi."

Silêncio.

Haru

— "E aí? Vai rir também?"

Shion

— "Não."

Haru ergueu os olhos, surpreso por um segundo. Mas logo voltou ao olhar cansado.

Haru

— "Que pena. O show foi de graça."

Shion mordeu a bochecha por dentro.

Shion

— "Eles são idiotas."

Haru

— "Você também É. A diferença é que agora me deve um trabalho em dupla."

Shion

— "Eu nunca... Te feri daquele jeito...."

Haru o encarou.

Haru

— "Ah, então empurrar na lixeira, me dar rasteira no corredor e espalhar que eu ‘tenho fobia de gente’ não conta?"

Shion abaixou o olhar. Por um instante, ele não tinha resposta afiada.

Shion

— "Tô dizendo que... eu fui babaca. Eles são pior."

Haru

— "Não sei se é tentativa de desculpa ou competição de quem é mais lixo."

Shion respirou fundo, deu um passo mais perto, mas ainda parecia travado.

Shion

— "É só que... você não parece se importar."

Haru

— "Não parece." — Haru murmurou. — "Mas eu me importo. Só que se eu demonstrar, eles vencem. Você incluído."

Silêncio.

O sinal tocou.

Shion hesitou, mas antes de sair, disse:

Shion

— "Você joga bem pra caramba."

Haru o olhou de canto.

Haru

— "Você joga mal pra caramba."

Shion

— "É por isso que a gente faz dupla. Equilíbrio."

Haru só revirou os olhos e colocou os fones de novo.

Shion voltou para a sala, mas o que ficou na cabeça dele não foi o sinal, nem os risos dos colegas. Foi a imagem de Haru sozinho, com o olhar vazio e o sanduíche ainda no colo.