Sob a Mesma Chuva - Capítulo 3 — Zona de Conflito Controlado

A escola parecia mais fria na manhã seguinte, mesmo com o sol brilhando. Haru entrou pelos fundos, o capuz cobrindo parte do rosto, tentando ignorar os olhares que sabia que vinham de todos os lados.

Alguns cochichavam.

Outros apenas observavam.

O olho roxo, ainda evidente, falava mais do que qualquer palavra poderia.

Ele se sentou no fundo da sala, jogando a mochila no chão com raiva contida.

Haru

— "Mais um dia nesse lixo..." — murmurou.

Do outro lado da sala, Shion chegou rindo alto com os amigos.

Fingindo que não havia feito nada.

Como se o soco no rosto de Haru fosse apenas um sonho.

Mas, por dentro, ele lembrava.

*Flashback da noite anterior*

Kauê

— "Você tá bem, mano?" — perguntou um dos colegas.

Joy

— "Tá meio... calado hoje."

Shion estava sentado na calçada em frente à própria casa, encarando o chão.

Shion

— "Tô ótimo. Por que não estaria?"

Joy

— "É que... aquilo com o Haru foi meio..."

Shion

— "O QUÊ? Tu vai defender ele agora?" — Shion cortou, irritado. — "Ele mereceu. Aquele nerd de merda me afrontou na frente de todo mundo."

Silêncio.

Shion

— "Ele não sabe o que é viver sendo... visto o tempo todo. Acha que é fácil ser eu?"

Mas ele não deixou os amigos ouvirem essa última parte. Só pensou. Engoliu. Como sempre fazia.

*De volta à sala de aula*

Shion lançou um olhar rápido na direção de Haru.

Ele estava calado, mexendo no celular, os olhos apagados. A expressão não era mais de raiva. Era... vazia.

Shion

— "Olha só." — Shion falou alto, cruzando os braços — "O nosso querido saco de pancada voltou."

Algumas risadas fracas ecoaram.

Mas o tom já não era o mesmo.

Até os colegas começaram a perceber que Shion parecia... insistente demais.

Haru não respondeu.

Shion se aproximou.

Shion

— "Ficou mudo agora? Vai fingir que não me escuta? Que foi? Trauma?"

Nada.

Shion

— "Eu te fiz um favor, sabia? Agora você tem um motivo real pra se esconder naquele mundinho de jogos patéticos. Aposto que lá você é o rei, né? Um personagemzinho com espada grande pra compensar..."

Haru levantou o olhar devagar.

Haru

— "Você tá bem, Shion?"

O tom era sereno. Sincero. Quase calmo demais.

Shion piscou, confuso.

Shion

— "O quê?"

Haru

— "É que... você Fica tão obcecado com o que eu faço. Me segue, me bate, me provoca. Parece até... carência."

Um "ohhh" se espalhou sutilmente pela sala.

Shion rangeu os dentes.

Shion

— "Você quer outro olho roxo, nerd de merda?"

Haru

— "Pode dar." — Haru se levantou. O rosto ainda machucado, mas a postura ereta. Firme.

Haru

— "Mas isso não vai mudar o que você é."

Shion avançou um passo. Haru não recuou.

Haru

— "Sabe qual a diferença entre nós dois?" — Haru continuou, olhando direto nos olhos dele.

Haru

— "Eu sou um lixo, sim. Mas pelo menos, eu não preciso fingir que sou perfeito."

Shion ficou ali. Paralizado. O olhar tenso, os punhos cerrados. Mas ele não bateu. Não disse mais nada.

Virou-se, empurrou um dos colegas e saiu da sala sem olhar para trás.

Mais tarde — Vestiário

Shion socou um dos armários de metal, fazendo um barulho que ecoou alto.

Shion

— "Ele tá se achando só porque respondeu uma vez."

Joy

— "Cara... você tá surtando por causa de um moleque que nem fala com ninguém. Isso não é só sobre orgulho, né?"

Shion

— "CALA A BOCA."

O colega se afastou.

Shion caiu sentado num banco.

Ficou olhando para as próprias mãos. As mãos com as quais havia batido em Haru.

Shion

— "Por que ele me olha daquele jeito... como se entendesse? Como se visse através..." Pensou.

Ele encostou a cabeça no armário, fechando os olhos.

Shion

— "Droga."

Dias então se passaram.

Quarta-feira, terceira aula — Sala de aula

Professor Kelvya

— "Pra próxima semana, vocês vão apresentar um trabalho em dupla sobre a Revolução Digital."

A turma começou a resmungar. O professor, um homem já com pouca paciência e muitos fios brancos na cabeça, levantou a mão pedindo silêncio.

Professor Kelvya

— "Eu já escolhi as duplas. Sem negociações.

Professor Kelvya

— "Haru e... Shion."

Silêncio.

Haru ergueu os olhos do caderno devagar.

Shion franziu a testa.

Shion

— "O quê? Com esse cara aí?" — Shion protestou, apontando como se Haru fosse uma praga.

Professor Kelvya

— "Sim. E agradeça que ainda deixei você fazer em dupla, Shion."

Shion

— "Isso é assédio psicológico."

Professor Kelvya

— "Você quer psicológico? Posso te deixar de recuperação."

Shion revirou os olhos, bufando. Haru apenas deu de ombros.

Haru

— "Tanto faz."

Professor Kelvya

— "É isso." — o professor concluiu. — "Agora se entendam. Ou tirem zero juntos."

Sexta-feira — Casa de Haru

Haru abriu a porta. Usava um moletom enorme e uma cara de quem tinha dormido duas horas.

Shion estava encostado no portão, usando a jaqueta do time de futebol, o celular na mão e a eterna expressão de superioridade entediada.

Shion

— "Você mora... aqui?" — ele olhou ao redor, surpreso por não ser um lixão.

Haru

— "Não. Eu montei uma casa falsa só pra impressionar idiotas." — Haru respondeu, sem emoção.

Shion

— "Nossa, começou com amor já."

Entraram.

A casa era simples, mas aconchegante. Havia estantes com mangás, action figures, e um pôster gigante de um RPG japonês na parede.

Shion

— "Esse aí é... um desenho?"

Haru

— "É um jogo." — Haru respondeu, revirando os olhos.

Shion

— "Tem espada?"

Haru

— "Tem história, Shion. Algo que sua cabeça provavelmente não consegue acompanhar."

Shion

— "Uau. Então você fala fora da internet também."

Haru

— "Só quando vale a pena."

Ambos sentaram-se em volta da mesa, os livros abertos entre eles. O silêncio pairou por alguns segundos.

Shion

— "Então... Revolução Digital." — Shion começou, mexendo em uma caneta como se fosse um bastão de beisebol. — "Podemos falar de celular, sei lá. Wi-Fi. Essas merdas."

Haru

— "Impressionante. Você basicamente descreveu a abertura de um vídeo do YouTube de 2010."

Shion

— "Você é sempre assim?"

Haru

— "Assim como?"

Shion

— "Sarcasticuzinho com complexo de superioridade?"

Haru

— "Sarcasmo é meu jeito de manter a sanidade perto de quem me empurrou numa lixeira."

Shion desviou o olhar, fingindo achar algo interessante no estofado da cadeira.

Shion

— "Técnico. Não foi uma lixeira. Foi um latão de reciclagem."

Haru bufou.

Haru

— "Ah, então está perdoado."

Um silêncio desconfortável caiu entre eles por um momento.

Haru pegou o notebook e abriu uma apresentação que já tinha começado sozinho.

Haru

— "Aqui. Tava fazendo isso antes de saber que ia dividir o trabalho com um Neandertal."

Shion olhou a tela, meio desconfiado. Depois... surpreso.

Shion

— "Você já fez metade?"

Haru

— "Eu estudo. Diferente de você, eu não uso a cabeça só pra segurar cabelo."

Shion

— "Aposto que você se acha tão inteligente que caga equações."

Haru

— "Depende da alimentação."

Shion riu — rápido, involuntário. Depois pigarreou, tentando voltar ao personagem.

Shion

— "Tsc. Tá. O que eu faço?"

Haru

— "Você pode fingir que contribuiu e ficar quieto. Já ajuda."

Shion

— "Você é um pé no saco."

Haru

— "Você é uma frustração ambulante com músculos."

Os dois se entreolharam. Por um instante, algo quase parecido com respeito mútuo passou pelo olhar de Shion. Mas ele desviou logo depois.

Shion

— "Não sei como alguém como você vive assim. Trancado em casa, jogando videogame, sem amigos reais..."

Haru

— "Engraçado, eu penso o mesmo sobre você. Só que no seu caso, trancado dentro da própria imagem, sem saber quem é de verdade."

Shion ficou em silêncio. De novo. Mas dessa vez, não rebateu.

A mãe de Haru apareceu na porta do quarto, sorridente.

Mãe do Haru

— "Haru, vai querer lasanha hoje?"

Haru

— "Sim. Shion vai ficar pra comer também."

Shion arregalou os olhos.

Shion

— "Eu vou?"

Haru

— "Você tem cara de quem só come proteína e frango seco. Vai fazer bem comer comida de verdade."

Shion

— "Nossa. Que honra." — Shion murmurou, mas... não foi embora.