Mentiras Amargas

A madrugada mal tinha se despedido, e Larissa já estava de pé. As olheiras profundas denunciavam a noite maldormida. Sentia o corpo pesado, a cabeça zonza, mas não havia tempo para isso. A rotina começava cedo, como sempre.

As crianças ainda dormiam, e o silêncio da casa só era quebrado pelo som distante de um galo cantando e o vento passando pela fresta da janela.

Larissa foi até a cozinha, abriu o armário e encarou a realidade: um pacote quase vazio de arroz, outro de feijão pela metade e uma pote de cuscuz. Suspirou. Aquilo teria que servir.

Abriu a geladeira. Duas garrafas de água, uma de refrigerante velho e dois ovos, com as cascas rachadas. Mais nada.

Era assim há dias. Sérgio não comprava nada e quando ela pedia, ouvia sempre a mesma resposta:

— Você tá gorda, Larissa. Se continuar comendo desse jeito vai explodir. Eu não vou sustentar mulher gorda.

Palavras que cortavam mais do que fome. O pior é que, com o tempo, Larissa começou a acreditar. Mesmo com os ossos já marcando sob a pele fina, pesando apenas 43 kg, ela olhava no espelho e enxergava defeitos. Porque ele repetia aquilo tanto, que virou verdade na cabeça dela.

Ela respirou fundo, pegou o cuscuz e colocou para cozinhar. Partiu os dois ovos — um estava estragado, jogou fora. Ficou só um. Quebrou em pedacinhos, misturou ao cuscuz para render.

Pouco depois, ouviu o som das porta do quarto. Os passinhos pequenos vieram na direção dela.

— Mãe… — Luan, seu filho mais velho, apareceu na cozinha, o cabelo bagunçado, coçando os olhos. Atrás, o caçula, Matheus, vinha abraçado a um paninho surrado.

Larissa se forçou a sorrir.

— Bom dia, meus amores. Vamos tomar banho pra merendar?

Eles assentiram com a cabeça, e ela preparou a bacia com água morna. Deu banho nos dois ali mesmo, com o cuidado de quem fazia daquilo um ritual de amor. Era nos pequenos gestos que ela tentava proteger os filhos do mundo.

Depois, sentaram-se à mesa. Larissa dividiu o cuscuz em três pratos pequenos, com pedacinhos minúsculos do ovo. Ela colocou os pratos na frente dos filhos, mas nenhum para si.

Luan, observador como sempre, olhou para a mãe.

— Mãe, e você? Não vai comer?

Ela sorriu, tentando parecer despreocupada.

— Ah, filho… a mamãe não tá com fome agora, não. Pode comer tranquilo.

Mas o menino franziu a testa, desconfiado.

— Mas você tá muito magra, mãe. Você tem que comer senão fica doente.

As palavras dele acertaram Larissa como uma flecha. Sentiu os olhos marejarem, mas se virou fingindo ajeitar alguma coisa no fogão para que eles não percebessem.

Como explicar para uma criança que só tinha comida pra eles? Que o pai deles se recusava a colocar comida na casa, enquanto gastava o pouco que tinha em bebida?

Ela não podia. Não devia.

Então, fingiu mais uma vez.

— A mamãe come depois, tá? Prometo.

Luan não insistiu. Pegou a colher e começou a comer devagar. Matheus, distraído, desenhava no prato com os grãos de cuscuz.

Depois que terminaram, Larissa os vestiu para a escola, arrumou as mochilas surradas e os acompanhou até o portão.

— Se comportem, meus amores. A mamãe ama muito vocês, disse, agachando-se para abraçá-los.

Eles saíram correndo para pegar a van da escola, que vinha subindo a rua.

Larissa ficou ali, parada, olhando até o veículo sumir na esquina. E então, sentiu a casa pesar novamente. Voltou para dentro e encostou-se na porta, respirando fundo.

Naquele instante, soube que não era fome que a consumia. Era tristeza.

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Comments

Danielle Pereira

Danielle Pereira

sai dessa casa com seus filhos ficar se lamentando não vão te ajudar seja forte 💪 ainda tá nova chega de ser ridícula ficar mendigando amor cair na real

2025-05-27

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