Pretendo Me Divorciar.
O cheiro de café requentado preenchia a cozinha pequena, e Larissa observava a fumaça subir da xícara com a mesma indiferença de quem já se acostumou com o amargo da vida. Os cabelos presos em um coque malfeito, olheiras fundas, e a velha camiseta larga — as marcas visíveis de noites mal dormidas e dias que pareciam sempre iguais.
Ela estava ali, sentada à mesa de fórmica riscada, enquanto as crianças dormiam no quarto ao lado. Na rua, o som distante de um cachorro latindo e uma moto passando quebravam o silêncio. Era assim todas as noites. Um eco de solidão e rotina que a acompanhava como uma sombra.
Larissa girava a colher dentro da xícara, sem pressa, e o som metálico se misturava ao peso dos próprios pensamentos. Aos dezenove anos, acreditava que seria diferente. Que a vida teria cor, teria planos, teria alguém. Agora, aos vinte e três, sentia-se cansada. E às vezes, quando ninguém via, se perguntava se algum dia tinha sido de verdade a personagem principal da própria história.
Ela fechou os olhos por um instante, e foi aí que o passado bateu à porta da memória.
Era uma tarde de céu limpo, o cheiro de terra molhada ainda pairava no ar depois de uma chuva rápida. Larissa, com seus cabelos presos em duas tranças, estava sentada na varanda da casa simples, desenhando no caderno de capa gasta. Era o que mais gostava de fazer: criar mundos onde tudo parecia possível.
Ao lado dela, Thaís, a amiga de infância, mastigava um pirulito e ria de algo no celular.
— Você vai acabar ficando famosa com esses desenhos, Lari — comentou Thaís, virando o aparelho pra mostrar uma foto de uma tatuagem que lembrava um dos rabiscos de Larissa.
Ela sorriu de leve, mas a esperança que antes brilhava nos olhos começava a se apagar.
— Isso é só passatempo, Thaís. Desenhar não paga conta… e nem dá futuro pra gente que nasceu do lado de cá.
Thaís fez uma careta.
— Ah, para com isso. Você fala como se tivesse oitenta anos. Tem dezenove, mulher. Ainda vai viver muita coisa.
Larissa suspirou, apoiando o queixo na mão.
— Sei lá. Eu sempre achei que… sabe, que um dia meu príncipe encantado ia aparecer. Que ia chegar alguém que visse mais do que esse corpo aqui, mais do que a cara bonita. Mas todo cara que aparece só quer uma coisa. Sempre foi assim. Aí eu fico pensando… talvez amor não seja pra mim.
Ela mordeu o canto do lábio, olhando para o céu que já ganhava tons alaranjados.
— Às vezes eu sinto que não nasci pra ser protagonista de nada. Que minha história é aquela que ninguém conta, que ninguém lembra. Só uma personagem de fundo. Só mais uma.
Thaís largou o celular, encarou a amiga e segurou sua mão.
— Não fala isso, Lari. Você é incrível. E mesmo que o mundo não perceba agora, uma hora alguém vai enxergar. E mesmo que ninguém enxergue, você tem que saber disso.
Larissa tentou sorrir, mas a vontade de chorar apertava o peito. Queria acreditar, mas já estava cansada de se decepcionar.
A colher bateu de leve na xícara, trazendo Larissa de volta pro presente. A cozinha, o café amargo, o vazio. Ela olhou o próprio reflexo no vidro da janela e mal se reconheceu.
Como foi que eu cheguei até aqui? — pensou.
Engoliu o resto do café frio e sentiu o gosto da saudade de quem um dia tinha sonhos.
Mas naquela noite, como tantas outras, Larissa decidiu se calar e esperar o sono chegar. Porque era só isso que restava: sobreviver a mais um dia.
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Atualizado até capítulo 41
Comments
Celia Aparecida
começando ler agora e estou achando bem interessante
2025-07-12
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