Acordo antes do despertador, como sempre.
São 6h42.
Três minutos antes do alarme tocar. O mesmo alarme que escolhi com aquele som calmo de piano — como se o dia, por si só, não fosse agressivo o bastante.
Levanto devagar. Me espreguiço. Me arrasto até o banheiro, me olho no espelho e faço aquela careta de quem precisa lembrar a si mesma que ainda está viva. Escovo os dentes, prendo o cabelo, lavo o rosto.
É tudo igual.É sempre igual. E, estranhamente, eu gosto disso.
Minha rotina é o único lugar em que o mundo faz sentido. Cada horário, cada passo, cada pequena repetição — tudo é um abrigo. Previsível. Seguro. Diferente da infância que tive. Diferente do que tento esquecer.
Enquanto passo manteiga no pão, penso no estágio que talvez eu comece mês que vem. Se tudo der certo, vou conseguir minha bolsa integral no curso de psicologia. Já tenho o diploma técnico e trabalho na clínica há dois anos como auxiliar administrativa. Nada demais, mas é honesto. E é meu.
Meu celular vibra. Olho, esperando alguma notificação boba. Mas é só ele: Vinícius.
Irmão mais velho, dor de cabeça número um, e dono de todas as minhas noites mal dormidas.
Tem dias que ele aparece como um furacão — bêbado, agitado, com ideias estúpidas e um sorriso de menino de rua. Outros, some como se nunca tivesse existido. Não responde. Não atende. E me faz passar horas olhando pro celular, pensando no pior.
Mas ele é meu irmão. E mesmo com todas as cagadas que ele faz, eu sou tudo que ele tem. E ele é o único pedaço da minha família que sobrou.
Leio a última mensagem que me mandou há três dias:
“Fica tranquila, pequena. Tô resolvendo umas paradas e volto logo. Te amo.”
Mentira.
Toda vez que ele diz isso, sei que vem merda por aí.
Respiro fundo. Não posso me deixar levar por isso agora. Tenho que trabalhar. Tenho contas. Tenho um plano. E nesse plano, eu me formo, abro minha própria clínica e nunca mais dependo de homem nenhum.
Nem de Vinícius. Nem de ninguém.
São 18h17 quando chego em casa.
Tiro os sapatos. Ligo a chaleira. Acendo a luz da sala. É automático.
Troco de roupa, prendo o cabelo num coque frouxo, e sento no sofá com minha velha cópia de A Sangue Frio aberta no colo. Leio duas páginas. Talvez três.
Então alguém toca a campainha.
O som me atravessa como um soco seco. Quase ninguém me visita sem avisar. E ninguém toca a campainha desse jeito — direto, forte, como se tivesse pressa ou autoridade.
Abro a porta com a corrente de segurança ainda travada.
É um homem engravatado. Alto, expressão neutra, olhos duros.
— Boa noite. Senhorita Luna Duarte?
— Quem quer saber?
— Trabalho com assuntos… delicados. Referentes a seu irmão, Vinícius Duarte.
Meu sangue gela.
— Ele está bem? O que aconteceu?
— Não posso falar aqui. É confidencial. Mas é urgente. E ele mencionou a senhorita como seu único contato de confiança.
Eu travo.
— Quem é você, exatamente?
Ele tira uma credencial. Não policial. Não oficial. Mas algo corporativo. A logo é de uma firma de advocacia que eu nunca ouvi falar, mas tudo parece absurdamente profissional. E frio.
— Nosso cliente precisa falar com você. Amanhã, 14h. Aqui está o endereço. Comparecer é do seu interesse. E do interesse de Vinícius.
Ele me entrega um envelope. Padrão. Sem nome. Sem selo.
— Se eu não for?
— Sua ausência será interpretada como desinteresse no bem-estar do seu irmão.
A frase me fere mais do que deveria. Quando olho de novo, ele já está virando as costas e descendo as escadas do prédio.
Fecho a porta. Trêmula. Envelope nas mãos.
Sinto como se algo tivesse entrado comigo. Algo invisível. Frio. E definitivo.
Abro o envelope.
Um endereço. Um horário. E só uma linha, escrita à mão:
“Venha sozinha. Ele depende de você.”
Sento de novo, o papel tremendo entre meus dedos.
Sinto a respiração falhar. O peito apertar.
Meu irmão se meteu em mais uma.
Mas dessa vez tem algo diferente.
Mais escuro. Mais perigoso. Mais real.
E eu não sei o que vou encontrar no dia seguinte.
Só sei que vou.
Porque se tem uma coisa que aprendi com o tempo, é que quando o passado bate à porta… ele não espera você estar pronta.
A noite foi um borrão.
Revirei na cama. Fingi que dormiria. Mas meu corpo sabia: algo tinha mudado. Como se o ar estivesse mais denso. Mais grosso. Como se a realidade tivesse esticado por baixo da porta do meu apartamento, escorrendo como fumaça.
Passei as horas seguintes pensando no envelope. No homem de olhos duros. No nome do meu irmão.
E no medo.
Porque o medo tem cheiro. Tem forma. Tem gosto. E agora, ele vivia em mim como uma segunda pele.
Às 13h10, já estou pronta.
Blusa de botão. Calça preta. Sapatilha discreta. Rímel leve. Nada chamativo. Não sei quem vou encontrar, mas sei o que eles verão: uma mulher calma, centrada, que sabe ouvir. Uma mulher que resolve.
A Uber me deixa na frente de um prédio alto, com fachada espelhada e nenhuma placa. Luxuoso, mas discreto. Como um lugar que tenta não ser visto, mesmo sendo impossível ignorar.
Meu estômago vira quando cruzo a porta.
O hall é vazio. Silencioso. Frio demais para o clima de fora.
— Luna Duarte — digo à recepcionista que parece saída de um editorial de moda.
Ela não responde. Apenas acena para o segurança ao lado da porta preta. Ele abre.
— Elevador privativo. Último andar. — diz ela.
A porta se fecha atrás de mim com um clique.
Definitivo.
O elevador sobe sem som. Sem espelho. Sem música.
Só eu e meu coração, agora descompassado.
Quando as portas se abrem, sou engolida por vermelho.
As paredes. As cortinas. O tapete. A luz. Tudo é vermelho, escuro e quente. Como o interior de um coração batendo devagar. Ou de um inferno elegante.
— Senhorita Duarte — diz um homem ao fundo da sala. Não o mesmo de ontem.
Esse é outro. Alto, moreno, com traços afiados e um terno sob medida. Está encostado na beirada de uma mesa de madeira escura, segurando um copo de cristal com algo âmbar dentro.
— Eu sou... — começo, mas ele levanta a mão.
— Eu sei quem você é. Luna. — Ele diz meu nome como se provasse o sabor na boca.
Minha garganta seca.
— Onde está o meu irmão?
Ele sorri. Mas não há simpatia no gesto.
— Sentada primeiro. — Aponta para uma poltrona de couro frente à dele. — E então conversamos.
Engulo o desconforto. Sento.
A sala tem cheiro de couro, bebida cara e algo indefinido, algo masculino, dominante, penetrante. O tipo de aroma que te prende antes que você perceba.
— Seu irmão me deve uma quantia considerável. E como todo covarde que ama sobreviver, ele usou você como moeda.
Meu coração para. Depois recomeça, frenético.
— Isso é algum tipo de brincadeira?
— Eu não brinco, Luna. Nunca.
Ele bebe, observando cada pequeno movimento meu. Me sinto nua, mesmo estando vestida até o pescoço.
— O que você quer?
— Uma solução. Um acordo.
— Que tipo de acordo?
Ele se inclina para frente, os olhos escuros fixos nos meus. Intensos. Perigosos. E com algo que não sei decifrar.
— Você vai fingir ser minha namorada por um tempo. Vai sorrir onde eu mandar. Vai se calar quando eu quiser silêncio. Vai me dar a sua imagem, sua presença, sua entrega social.
Em troca... eu não quebro os ossos do seu irmão e os mando pelo correio.
Eu travo. Por dentro e por fora.
— Isso é absurdo.
— Não. Isso é a única oferta que você vai receber.
Porque veja, Luna... você é limpa. Perfeita. Boa.
E isso... isso é exatamente o que eu preciso ao meu lado agora. Uma mentira convincente. Embalada em moralidade.
— E se eu disser não?
Ele sorri. Lento. Quase carinhoso.
— Então reze pra gostar de caixões fechados.
Fico em silêncio. Congelada. Um segundo. Dois. Talvez mil.
E então percebo que não há saída.
Não pra mim.
Não pra Vinícius.
E talvez… nunca houve.
— Quanto tempo? — minha voz sai baixa, quebrada.
Ele se levanta. Devagar. Caminha até mim. Para atrás da minha poltrona. Me cerca com presença. Com calor. Com perigo.
— Até quando eu disser. — sussurra no meu ouvido. — Bem-vinda à jaula, Luna.
E nesse instante, com a respiração presa e a pele em chamas, percebo que acabei de vender minha alma.
E ele nem precisou pedir.
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Atualizado até capítulo 42
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