A mala pesa mais no braço do que nas rodas. Acho que, no fundo, sou eu que tô pesada. Pesada de pensamentos, de incertezas, de memórias que grudam igual chiclete velho no sapato.
O barulho do aeroporto me engole. Pessoas andando apressadas, vozes misturadas, malas sendo arrastadas, crianças chorando, anúncios no alto-falante que eu nem sei se tô ouvindo de verdade ou se minha cabeça tá inventando.
Meus dedos apertam forte a alça da bolsa, quase como se ela fosse me segurar de alguma coisa. Como se ela pudesse impedir meu corpo de simplesmente... desistir.
E aí, do meu lado, ela. Minha mãe.
De braços cruzados, o rosto sério, como sempre foi. A boca apertada, segurando o que não sabe dizer. Porque ela nunca soube. Nunca conseguiu ser aquele colo, aquele lar que eu tanto precisei. Mas, mesmo assim… ela tá aqui.
A gente se olha. E, por um segundo, o silêncio pesa mais do que qualquer palavra. É aquele tipo de silêncio que só quem viveu entende. Cheio de coisas não ditas, de mágoas escondidas, de amor torto, meio quebrado, mas amor, do jeito que ela sabe dar.
Ela me puxa de repente. Me aperta. Forte.
Daquele jeito que não é só abraço. É tipo um vai dar certo, é tipo um “vai lá, minha filha, vai ser grande”. É quase um pedido de desculpa que ela não sabe fazer.
— Você nasceu pra isso... — a voz dela sai meio rouca, meio engasgada. — Não deixa nada te parar, ouviu? Nem homem, nem passado, nem ninguém.
Eu fecho os olhos, aperto os braços em volta dela. E, pela primeira vez em tanto tempo, meu corpo inteiro parece querer se agarrar nela, como quando eu era criança e achava que o colo dela podia me proteger do mundo.
Mas aí ela me solta.
E, quando solta... nossa... é como se ela tivesse arrancado o chão debaixo dos meus pés.
É real. Agora é real.
Ela me olha de novo. Dá aquele meio sorriso que nunca chega nos olhos. E eu vejo. Vejo que, no fundo, ela também tá com medo. Porque, do jeito dela, ela sabe que, a partir daqui, é só eu e eu. Sozinha no mundo.
Dou dois passos pra trás. Seguro a alça da mala com tanta força que sinto as unhas marcando na palma da mão.
— Vai lá... — ela diz. — Vai viver tua vida, Joyce. Vai ser grande, menina.
Eu aceno. E nem tento responder, porque, se abrir a boca, eu sei... eu sei que desabo.
Viro as costas.
E cada passo até o portão de embarque parece mais pesado do que o anterior.
Passo pela esteira. Pelo raio-x. Pelo detector de metais que apita sem nem ter motivo. E, quando percebo, tô ali, sozinha, segurando o bilhete de embarque, olhando pra porta que vai me arrancar do que eu conheço.
Meus pés querem recuar. Meu corpo quer correr. Quer voltar pra cama, pro quarto, pro conhecido.
Mas eu não volto.
Respiro fundo.
E entro.
O corredor do avião parece mais estreito do que devia. As pessoas batem bolsa, empurram, sorriem sem olhar. Cada um preso no seu próprio mundo.
Aperto o crucifixo no pescoço. Fecho os olhos.
— Foco no sonho... foco no sonho... — repito.
Me sento na poltrona. Assento 24A. Janela. Que ironia. Eu que sempre tive medo de altura, agora tô aqui, prestes a atravessar o oceano inteiro.
Cinto apertado. As luzes piscam. A comissária fala coisas que eu nem escuto. Meu cérebro já tá ocupado demais criando todos os piores cenários possíveis.
E se eu travar?
E se eu não conseguir?
E se eu não for capaz nem de ficar na mesma sala que ele?
E se ele olhar pra mim e enxergar tudo que eu tentei esconder a vida inteira?
Minha perna balança sem parar. As mãos tremem. Sinto o coração socando dentro do peito, tão forte, tão desesperado, que parece querer arrebentar o osso pra sair.
O avião começa a se mover.
Meu estômago sobe, desce, revira. As turbinas fazem aquele barulho grave, ameaçador, como se o mundo inteiro estivesse prestes a se desfazer em pedaços.
As rodas desgrudam do chão.
E, nesse exato segundo, eu percebo...
Não tem mais volta.
A cidade lá embaixo vai ficando pequena. As luzes viram pontinhos. As ruas somem. E, junto com elas, parece que parte de mim também tá ficando ali.
A Joyce de antes. A que vivia dentro das próprias grades. A que acreditou, por tanto tempo, que não merecia mais do que migalhas.
Ela tá ficando.
Ou, pelo menos, eu espero que ela fique.
Porque aqui... aqui nesse avião, tem uma outra. Uma que, mesmo tremendo, mesmo com medo, mesmo se sentindo a pessoa mais sozinha do universo... decidiu tentar.
Aperto o crucifixo de novo.
— Foco no sonho... foco no sonho... — quase um mantra. Quase uma súplica.
Mas não adianta. O peito continua apertado. As mãos continuam suando. O medo não vai embora.
Ele só senta do meu lado. Coloca o cinto. E viaja comigo.
Fecho os olhos.
E, mesmo que o corpo não pregue o olho, mesmo que a ansiedade seja mais forte que o cansaço, eu sei...
O caminho não tem volta.
Ou eu aprendo a voar.
Ou eu caio tentando.
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Atualizado até capítulo 29
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