Entre Dobras e Despedidas

O zíper da mala faz um som seco quando fecho pela terceira vez. E, mesmo assim, ela parece me encarar de volta, dizendo que ainda falta alguma coisa.

Olho em volta do quarto. Meu quarto. Meu pequeno universo. Tão meu, tão cheio de mim, tão cheio das partes que eu escondi do mundo por tanto tempo.

Me agacho no canto, puxo uma caixa debaixo da cama. A tampa desliza fácil, revelando sapatilhas velhas, algumas tão gastas que nem sei porque ainda guardei. Talvez porque elas sejam mais que tecido e cola. São cicatrizes. São pedaços dos meus próprios pés impressos ali. Cada dobra, cada rasgo, cada linha marcada é uma lembrança de que eu estive aqui. Que eu resisti.

Seguro uma delas nas mãos. A ponta toda aberta, desfiada. A fita manchada de suor e lágrimas. Passo os dedos sobre ela como quem acaricia uma memória.

— Você também vem comigo — murmuro, sem nem perceber.

Abro a gaveta da cômoda. As roupas se empilham de forma quase automática. Jeans, camisetas, alguns vestidos, moletom... Dobro, dobro, desdobro. O corpo tá no modo automático, mas a cabeça… Deus, a cabeça tá um caos.

Será que eu tô pronta?

Será que eu sou capaz?

Fecho os olhos. E, por alguns segundos, tudo que escuto é o som do próprio coração martelando dentro do peito. Rápido. Descompassado. Como se quisesse fugir. Como se quisesse arrancar minhas costelas e correr pra bem longe.

E se eu não for boa o bastante?

E se eu travar?

E se eles olharem pra mim e perceberem que eu não sou nada além de uma fraude bem ensaiada?

Engulo seco. A garganta queima. Uma pontada amarga sobe, como se o não que vive escondido dentro de mim tivesse escalado até a boca, pronto pra saltar, pra me sabotar mais uma vez.

— Não... — sussurro. — Não agora.

Pego as últimas coisas da prateleira. Meu vidrinho de perfume barato. A pulseira de contas que minha mãe me deu quando eu era criança. As fotos antigas, uma com as meninas do balé, outra de mim ainda pequena, com aquele sorriso torto, segurando meu primeiro troféu.

Aquela menina nem sabia o que a vida ia fazer com ela. Nem imaginava as quedas, os tombos, os cortes invisíveis que iam rasgar ela por dentro.

Olho pro espelho.

E, por um segundo, não sei se reconheço quem me olha de volta.

A boneca de porcelana ainda tá ali. A franja certinha, o olhar alinhado, os ombros eretos, a postura impecável que a vida me obrigou a ter. Mas, por trás dos olhos, eu vejo... eu vejo ela. A Joyce de verdade. Aquela que ninguém nunca conheceu. Aquela que aprendeu a sorrir com rachaduras na alma.

Aperto a borda da cômoda.

— Você consegue... você consegue, sim... — repito, como se a repetição tivesse o poder de enfiar essa mentira dentro do meu próprio corpo até ela virar verdade.

Mas não é fácil. Deus, não é.

Me viro, olho de novo o quarto. Cada pedacinho dele carrega um pedaço de mim. O pôster antigo de uma bailarina famosa colado na parede, meio rasgado no canto. O tapete manchado. As luzinhas que pendurei quando achei que enfeitar o quarto ia me fazer esquecer que ele sempre foi mais prisão do que lar.

Passo a mão na cabeceira da cama. No criado-mudo. No abajur que pisca quando quer.

Quantas vezes eu me encolhi aqui, abraçada nas próprias pernas, com o peito rasgando de ansiedade, pedindo, implorando, pra que o mundo lá fora me esquecesse? Quantas vezes eu desejei sumir, desaparecer, só... parar de doer?

E agora… agora eu tô indo.

Pra longe. Pra outro país. Outra cultura. Outra língua. Outro tudo.

E é assustador. Assustador de um jeito que nem cabe no corpo. Como se o medo fosse grande demais, pesado demais, largo demais. Como se ele escorresse pelos ossos, pelas veias, pelas pontas dos dedos.

Mas eu sei... eu sei que não posso passar o resto da vida aqui. Presa no passado. Presa no que me fizeram acreditar que eu sou.

Eu sou mais. Eu preciso ser mais. Nem que pra isso eu tenha que me reconstruir do outro lado do mundo, peça por peça, osso por osso, músculo por músculo, lágrima por lágrima.

A mala tá quase cheia. Ainda cabe mais um pouco.

Pego a caixa pequena que fica em cima do armário. Dentro, as coisinhas mais minhas. As cartas que nunca mandei. As fotos que nunca mostrei pra ninguém. Os bilhetes de mim pra mim mesma. Coisas que ninguém nunca soube que existiam.

Pego um deles. Papel amassado, a tinta quase apagada de tanto ser dobrado e desdobrado. Leio, mesmo já sabendo de cor:

"Você sobreviveu. Isso já é mais do que muita gente consegue."

Dobro de novo. E coloco na mala. Porque eu sei que vou precisar lembrar disso lá.

Olho em volta uma última vez.

— Tchau... — minha voz falha. — Tchau, Joyce do passado.

Fecho o zíper.

E, junto com ele, fecho um ciclo que já devia ter acabado há muito tempo.

Amanhã... amanhã eu vou.

Mesmo tremendo, mesmo com medo. Mesmo que tudo dentro de mim implore pra ficar.

Eu vou.

Porque, se tem uma coisa que a vida me ensinou, é que ou você aprende a se levantar... ou ela te deixa no chão.

E eu... eu cansei de ficar no chão.

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