o que eles não veem

O cheiro de café fresco preenche a cozinha pequena, mas aconchegante, da casa da minha mãe. As paredes são brancas, meio descascadas perto da janela que dá vista pra rua. Uma cortina floral balança, acompanhando o vento leve dessa manhã. Tudo aqui tem cheiro de lar. De história. De conforto.

Sento na mesa de madeira, onde cada riscado tem uma lembrança. As mãos estão inquietas, e eu percebo isso quando noto que tô apertando o próprio dedo até ele ficar vermelho.

— "Tá, agora fala. O que é que você tá querendo me contar que tá te deixando com essa cara aí, menina?" — minha mãe pergunta, cruzando os braços, arqueando uma sobrancelha do jeito que só ela sabe fazer.

Ela é assim. Sempre direta. Sempre prática. O tipo de pessoa que não gosta de rodeios, que resolve tudo no grito ou no abraço.

Respiro fundo. Meu peito sobe e desce como se eu precisasse convencer meu corpo inteiro a falar.

— "Eu aceitei." — solto. Baixo. Quase num sussurro. — "O convite. Pra trabalhar lá… com eles."

Por um segundo, o silêncio toma conta. Mas é só um segundo.

— "Minha nossa senhora, Joyce!" — ela leva as mãos ao rosto, os olhos arregalados, e solta aquele riso meio choro, meio incredulidade. — "Você conseguiu, minha filha! Você conseguiu! Eu falei que você ia conseguir! Que orgulho de você, meu Deus do céu!"

Ela se levanta, vem até mim e me puxa pra aquele abraço apertado, de quem carrega a vida toda dentro dos braços. Sinto o cheiro do perfume dela, aquele mesmo cheiro desde que eu era criança — floral, meio doce, meio caseiro.

— "Essa é a chance da sua vida, meu amor. Você merece isso! Merece ser reconhecida! Vai voar, minha filha. Você nasceu pra isso, pra ser grande, pra ir além!" — ela fala, apertando meu rosto com as duas mãos.

Eu sorrio. E, por um momento, quase me deixo acreditar que tudo é tão simples assim.

Mas não é.

Mordo o lábio inferior, sinto a ponta dos dedos gelar. — "Mãe..." — minha voz já muda, mais baixa, mais hesitante. — "Você sabe que... que esse trabalho vai ser… ao lado de… deles. Homens."

E, como se eu tivesse jogado um balde de água fria na euforia dela, vejo o sorriso da minha mãe murchar. Ela revira os olhos, solta um suspiro irritado, bate as mãos na coxa.

— "Ah, Joyce… Pelo amor de Deus, né?!" — ela balança a cabeça, impaciente. — "Você não vai deixar isso te travar, né? Isso foi lá atrás, mulher! Já passou. Para de besteira. Supera isso. Isso não te define, não pode te definir!"

Eu engulo seco. É aquele tipo de dor que não dá pra explicar. Ela nunca entendeu. Nunca vai entender. E eu… eu já cansei de tentar fazer ela entender.

— "Não é assim, mãe." — minha voz sai mais baixa, quase sumindo. — "Não é tão simples."

Ela solta outro suspiro, como quem varre a sujeira pra debaixo do tapete. — "Claro que é simples! Isso não tem nada a ver! Isso é só trabalho, minha filha. Só trabalho. Você vai fazer o que você ama, ensinar, dançar, e acabou. Eles são seus colegas, seus alunos, sei lá. Homens, mulheres, tanto faz. Isso não muda nada."

Queria tanto que fosse assim. Queria tanto que minha cabeça funcionasse desse jeito simples, direto, prático… Mas não. Porque a dor não some só porque alguém te manda superar. Ela não evapora com força de vontade.

Ela fica. Ela mora dentro de mim. Ela se senta no sofá da minha mente, cruza as pernas, acende um cigarro imaginário e me observa o tempo todo. Tá ali, ó. Persistente.

— "Eu sei, mãe. Eu sei…" — minto. Ou talvez tente me convencer disso também. — "É só trabalho. Só isso."

Ela sorri de novo, forçando aquele otimismo que sempre parece resolver tudo na cabeça dela.

— "Isso aí! Pensa assim! Não deixa besteira nenhuma te impedir. Você sempre foi muito focada, Joyce. Sempre. Desde pequena. Nunca foi de sair, de ter muita amizade, de fazer bagunça. Sempre com a cabeça na dança. E olha aí… valeu a pena, não valeu? Tá aí, colhendo os frutos."

Frio sobe pela minha espinha. Porque é verdade. Eu nunca tive muitos amigos. Nunca deixei. Ou talvez… nunca me deixaram. Minha mãe sempre falava que amizade tirava o foco, que gente demais distrai, que quem quer ser grande precisa andar sozinho.

E eu fui. Fui sozinha. A vida inteira.

A única pessoa que eu tive, que me estendeu a mão lá atrás… prefiro nem pensar agora. Nem trazer esse nome pra esse momento. Isso é assunto que fica trancado na gaveta, junto com todas as outras coisas que eu não quero — ou não posso — abrir.

— "Mas olha, Joyce…" — a voz da minha mãe suaviza um pouco, e ela segura minhas mãos sobre a mesa. — "Você vai viver coisas lindas lá. Eu sinto. Isso aí pode abrir portas, minha filha. Portas enormes. Você é talentosa, dedicada, é a melhor no que faz. As pessoas lá vão enxergar isso. Você vai participar de coisa grande, de coisa importante. E daqui a pouco, ó… tá sendo chamada pra trabalhar em tudo quanto é lugar desse mundo. Vai por mim."

Sorrio. E, pela primeira vez, sinto aquele calorzinho no peito. Porque, apesar de tudo… de tudo mesmo… eu tô feliz.

Feliz por estar indo. Por sair dessa bolha, desse mesmo chão, dessas mesmas paredes que sempre me cercaram. É assustador, sim. É desconhecido, sim. Mas, de algum jeito… parece certo. Parece que, talvez, só talvez… eu finalmente possa ser vista.

Por quem eu sou.

Por tudo que eu sou.

E, principalmente… por tudo que eu escondi até hoje.

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Cardoso Silva

Cardoso Silva

💜💜💜

2025-06-06

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