O som das sapatilhas riscando o chão de madeira. O cheiro de resina, de suor, de esforço, de sonhos. A porta da minha escola de balé range quando empurro, como sempre fez. E, como sempre, meu peito aperta no exato segundo em que cruzo aquele batente.
Mas hoje... hoje aperta diferente.
As paredes parecem mais brancas. O teto, mais alto. As janelas, mais abertas. Talvez porque eu saiba que, daqui a pouco, não vou mais fazer parte disso.
O último dia.
O último.
Respiro fundo. Tento segurar o nó que sobe na garganta. Porque, apesar de tudo... apesar de toda dor, de todos os fantasmas, foi isso aqui que me manteve viva. A dança foi meu bote salva-vidas no meio de um oceano que quase me engoliu inteira. Se não fosse ela... eu não estaria mais aqui. Eu sei disso. Eu sempre soube.
— "PROFEEEEEEE!!!" — um grito estridente me faz olhar pra frente, segundos antes de ser atropelada por um enxame de adolescentes desesperadas, rindo, chorando, me abraçando como se eu fosse sumir ali mesmo.
— "Aaaaaah, ela chegou!!!"
— "Professora, não vai emboraaaaa!!!"
— "Leva a gente junto!!"
— "A gente cabe na mala, prometo!!"
Elas falam tudo ao mesmo tempo, aos gritos, misturando risos com soluços, apertando meu corpo como se pudessem segurar o tempo entre os braços.
Quando olho pra dentro da sala, quase não acredito.
Cartazes coloridos colados nas paredes, no espelho, até no piano. Corações desenhados, meu nome escrito com glitter, fotos nossas, bilhetes, recados. No meio da sala, um banner enorme com letras garrafais escrito: “NUNCA VAMOS ESQUECER VOCÊ, PROFESSORA JOYCE”.
E, no canto, um celular gravando, enquanto uma delas fala: — “Galera, essa é a nossa teacher maravilhosa que vai TRABALHAR COM O BTS, SIM, ISSO MESMO, VOCÊS OUVIRAM CERTO, COM O BTS, MEU DEUS, EU TÔ PASSANDO MAAAL!!”
E aí começa o pandemônio. Elas surtam. Gritam. Pulam. Uma pega meu braço, sacode: — “Professora, pelo amor de Deus, você tem noção do que é isso?! Isso é histórico! Eu vou contar pros meus filhos que minha professora foi trabalhar com o BTS!”
Eu sorrio. Sorrio grande. Porque elas merecem esse sorriso. Elas merecem ver essa versão de mim. A boneca perfeita. A professora doce, impecável, elegante. A que nunca deixa transparecer as rachaduras na porcelana.
Por fora, eu sou isso. Por dentro... Deus, por dentro é um abismo. Um buraco que não fecha. Ansiedade latejando no peito. Uma mistura de medo, insegurança, e aquele velho sussurro que nunca cala: "E se você não for boa o bastante? E se eles descobrirem que você não é tudo isso?"
Mas aqui, com elas... eu seguro firme. Finjo que tá tudo bem. Que eu sou forte. Que essa despedida não tá arrancando pedaços de mim.
— "Profe, vem aqui! A gente fez um vídeo!" — uma delas me puxa pra frente do espelho.
O vídeo começa a rodar. Tem fotos nossas, vídeos de ensaios, apresentações, bastidores. E, no fundo, uma música que elas sabem que eu amo — “Spring Day”, do BTS. Como se elas soubessem que, de algum jeito, aquela música sempre soou como abraço pra mim, mesmo que eu nunca tenha dito.
— “Obrigada por tudo, professora Joyce...” — uma voz doce, emocionada, começa no vídeo. — “Por acreditar na gente. Por ensinar que a dança não é só técnica, é amor, é resistência, é sobre cair e levantar quantas vezes for preciso. A gente te ama muito. E a gente sabe que, lá onde você vai, você vai brilhar. Porque quem dança com o coração, nunca some. Fica pra sempre na gente.”
Aí desmorono. As lágrimas descem, quentes, grossas, sem controle.
Abracei todas. Uma por uma. Forte. Apertado. Como se eu pudesse gravar o cheiro, a textura, o calor, tudo delas na memória.
No meio dos abraços, uma mãozinha me entrega alguma coisa.
— “Profe... isso é pra você. Pra não esquecer da gente. E pra você saber quem é o Jimin. Você PRECISA saber quem é o Jimin, profe. Sério.” — diz, segurando um photocard plastificado.
Pego o card. Uma foto de um menino sorrindo. Cabelos loiros, sorriso bonito, olhar meio doce, meio travesso. Eu olho. E, por um segundo, quase sorrio de verdade.
— “Esse é o Jimin, profe. Você vai AMAR ele.”
Arqueio uma sobrancelha, tentando segurar o riso. — "Ele parece... simpático."
Mas, por dentro, aquela voz velha, amarga, me lembra: “Quanto mais doce parece... mais perigoso é. Nunca confie.”
Guardo o photocard na bolsa, junto com os bilhetes, junto com os pedaços do meu coração que elas me deram hoje.
O ensaio continua, entre risos, passos, mais lágrimas. Me esforço pra gravar cada rosto, cada movimento, cada som daquele lugar. Porque amanhã… amanhã eu não volto mais. Amanhã, a vida vira outra coisa.
Quando o ensaio termina, fico mais um tempo sozinha na sala. Só eu, o eco dos risos, e o cheiro da resina misturado com a saudade que já começa a nascer.
Olho meu reflexo no espelho. A professora perfeita, impecável. A boneca que todo mundo vê.
Ninguém nunca viu a rachadura. Ninguém nunca soube do que realmente existe por trás.
Amanhã… eles vão descobrir.
Se estou pronta? Não.
Mas vou mesmo assim.
Porque é isso ou continuar presa num passado que nunca mais vai me devolver nada além de dor.
E, pela primeira vez, talvez... eu esteja pronta pra ser mais do que só uma boneca de porcelana.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 29
Comments