Fragmentos de Sangue e Luz
O silêncio naquela noite era antinatural. Não um silêncio comum, mas um vazio carregado, como se o mundo prendesse a respiração antes de um colapso inevitável. Elisa, ainda com o medalhão apertado entre os dedos, sentia a pulsação do objeto como se ele tivesse vida própria. Desde o encontro com o homem diante de sua casa, nada mais parecia seguro.
Trancada no quarto, cercada por velas acesas e símbolos rabiscados às pressas, ela tentava entender o que havia desencadeado. Os flashes de memória se tornavam mais intensos, e as vozes que antes sussurram agora gritavam dentro de sua cabeça.
Foi nesse estado que ela decidiu revisitar um lugar esquecido, um casarão abandonado na zona rural, conhecido como Quinta das Colinas. Seu avô mencionava aquela propriedade com temor quando ela era criança, dizendo que os alicerces guardavam segredos tão antigos quanto a própria terra. Talvez ali ela encontrasse respostas.
Antes do amanhecer, saiu pela estrada com o carro velho que herdara da tia. O trajeto era longo e tortuoso, margeado por árvores retorcidas e campos enevoados. A cada curva, a sensação de que alguém a observava se intensificava. Contudo, não havia veículos atrás ou sinais de vida ao redor.
Ao chegar, o portão enferrujado da quinta rangeu como um grito. A vegetação tomava conta do terreno, e as paredes da casa estavam cobertas por trepadeiras espessas, como se a natureza tentasse esconder algo que jamais deveria ser exposto.
Ela empurrou a porta principal. O ranger ecoou pelos corredores. O ar era denso, carregado de poeira e um cheiro metálico que não pertencia ao tempo presente.
Caminhou lentamente até a escadaria central. Lá, uma pintura gigantesca dominava a parede: mostrava uma cerimônia antiga, com pessoas em trajes cerimoniais formando um círculo ao redor de um altar de pedra. No centro, uma mulher de cabelos negros, com os braços erguidos, era iluminada por uma fenda no teto que derramava luz vermelha.
Elisa reconheceu os olhos da mulher — eram os seus.
A realidade se curvou.
De repente, ela não estava mais na casa abandonada, mas na própria cerimônia. O tempo se dobrou, lançando-a para dentro da memória de outra existência. Ao seu redor, vozes entoavam cantos em uma língua morta. Ela vestia um manto dourado, com símbolos esculpidos em cristais presos ao tecido. À sua frente, Victor estava ajoelhado, com os pulsos amarrados por cordas de linho e olhos cravados nos seus.
Ela se viu erguendo um punhal de obsidiana.
Uma dor lancinante percorreu seu peito. A visão se desfez como vidro trincado, lançando-a de volta à sala da quinta. Caiu no chão, arfando, o corpo encharcado de suor.
A mesma dor da visão se manifestava agora, como se o ato do passado tivesse deixado feridas ainda abertas em sua alma.
Cambaleando, encontrou um alçapão sob o tapete antigo da sala de jantar. Abriu-o, revelando uma escadaria espiral que descia para as entranhas da terra. Cada degrau parecia pulsar sob seus pés, como se estivesse viva.
Lá embaixo, a escuridão era total até que uma luz azulada acendeu no centro da câmara subterrânea. A fonte era um círculo esculpido no chão, com sete pontas conectadas por linhas incandescentes. No centro, uma pedra vermelha flutuava, girando lentamente.
Ao aproximar-se, sentiu o magnetismo do objeto puxando suas memórias como um furacão. Viu faces de outras vidas — uma guerreira tribal, uma cortesã francesa, uma camponesa da Sibéria, todas com os mesmos olhos: os dela.
E em cada uma dessas existências, Victor surgia, às vezes como amante, outras como carrasco, mas sempre presente, eternamente ligado à sua essência.
Elisa ajoelhou-se, tocando a pedra com a ponta dos dedos. Um estrondo abalou o chão. A câmara tremeu, e vozes antigas, agora nítidas, entoaram o mesmo canto da visão. A pedra dissolveu-se em pó brilhante, espalhando-se por todo o recinto.
Uma figura emergiu das sombras: um homem encapuzado, com uma túnica marcada por símbolos iguais aos do medalhão. Seus olhos, um misto de prata e trevas, refletiam eras de conhecimento e loucura.
— Você despertou o Coração do Ciclo — disse ele, com voz ecoante. — Agora o tempo se curva ao seu redor, mas cada escolha terá um preço.
— Quem é você?
— Fui o primeiro a tentar quebrar o círculo. Fracassei. Agora sou apenas o Guardião da Roda. E você... é a última esperança.
Elisa hesitou.
— Como posso impedir Victor?
O homem se aproximou, erguendo uma mão sobre seu peito.
— Você precisa relembrar o momento em que escolheu o fardo. Só então entenderá o que precisa ser feito.
Uma onda de energia a envolveu, lançando-a para um campo aberto sob um eclipse. Milhares de pessoas reunidas. No centro, ela novamente, dessa vez com olhos sem brilho, selando com sangue uma aliança com uma entidade sem rosto.
Despertou subitamente no chão da câmara, sozinha. O círculo havia desaparecido. A pedra também. Mas em sua mão, restava uma runa marcada a fogo: um símbolo que pulsava em sincronia com seu coração.
Saiu da quinta ao entardecer, sentindo que carregava dentro de si um fragmento da verdade. Ainda incompleta, mas fatalmente poderosa.
As estrelas começaram a surgir no céu, mas uma delas parecia se mover contra o curso natural, como um sinal divino de que a noite seria longa.
Elisa não estava mais fugindo do passado. Agora, caminhava ao encontro do próximo véu a ser rasgado.
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Atualizado até capítulo 41
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