Palco Queimado
A madeira sob seus pés rangia como se reclamasse a presença de um intruso esquecido pelo tempo. Elisa olhou ao redor, desorientada. Estava no centro de um palco antigo, cercado por fileiras de cadeiras vazias cobertas por poeira. Cortinas vermelhas desbotadas balançavam suavemente com uma brisa inexistente. Tudo ali parecia suspenso, como um teatro congelado no instante antes da tragédia.
Ela não sabia como chegar até ali. Um instante estava em sua sala, o outro… dentro do cenário de uma lembrança que não era sua. O teatro estava em silêncio absoluto. A respiração de Elisa ecoava, e cada passo reverberava como um trovão contido entre as paredes.
O cheiro era uma mistura de madeira queimada e mofo antigo. Não havia sinal de fogo recente, mas as marcas estavam por toda parte: manchas escuras nas paredes, pedaços de teto caídos, e colunas rachadas como se o próprio tempo tivesse desmoronado.
Caminhou até a beira do palco. O salão se estendia à sua frente como um abismo escuro, mas não vazio. Silhuetas se formavam nos assentos, como vultos presos na penumbra. Estavam sentados, imóveis, como se aguardassem o próximo ato de uma peça que nunca terminou.
— Você voltou, Isadora — disse uma voz masculina, firme e carregada de mágoa.
Elisa se virou bruscamente.
Um homem alto surgia das sombras do palco. Vestia roupas da década de 30: camisa branca, colete escuro, calças bem ajustadas. Os cabelos estavam penteados para trás, e seus olhos carregavam um tom âmbar incandescente, como brasas sob cinzas. Ela deu um passo para trás, sentindo um frio inóspito correr pela espinha.
— Meu nome não é Isadora — disse, tentando firmar a voz. — Sou Elisa.
Ele sorriu de forma melancólica.
— Todos mudamos de nomes, mas a alma não esquece. Você me deixou ali, entre as chamas. Pedi ajuda… e você virou as costas.
Ela sacudiu a cabeça, confusa.
— Eu não lembro de nada disso. Nunca vi você antes.
O homem se aproximou, lentamente, sem fazer sombra. Estendeu a mão com a palma virada para cima.
— Quer que eu mostre?
A dúvida rasgava o peito de Elisa. Cada instinto dizia para correr, mas havia algo em seus olhos que implorava por redenção. Contra sua própria vontade, aproximou-se e encostou os dedos nos dele.
O teatro desapareceu.
Ela foi arremessada dentro de um turbilhão de imagens, sons e sensações. Viu-se vestida com roupas antigas, correndo pelos bastidores de um palco em chamas. Alguém gritava seu nome: Isadora. Ela se virou por um instante, viu o homem sendo esmagado por uma viga em chamas e hesitou. Mas ao invés de ajudá-lo, fugiu. Os olhos dele estavam cheios de desespero e dor. A visão sumiu num clarão.
De volta ao palco, Elisa caiu de joelhos, arfando.
— Isso… isso não sou eu — disse, com lágrimas nos olhos. — Não pode ser verdade.
O homem observava-a com tristeza.
— O passado não pede permissão para voltar. Ele apenas retorna.
— Por que está me mostrando isso?
— Porque o ciclo precisa ser fechado. E para isso, você precisa se lembrar de tudo.
As luzes do teatro começaram a piscar. Os vultos nas cadeiras se levantaram ao mesmo tempo. As sombras ganharam contornos, formas humanas e rostos apagados. Um sussurro coletivo ecoou por todos os cantos:
“O Círculo não se quebra. Ele se completa.”
Elisa gritou e correu pelo palco, mas não havia saída. As cortinas fecharam com força atrás dela. O homem desapareceu, como se nunca estivesse ali.
De repente, o chão sob seus pés começou a rachar. Luzes brancas emergiram das frestas, e a madeira parecia se dissolver. Antes que pudesse pensar em qualquer reação, sentiu-se cair em queda livre.
Acordou com um sobressalto em sua cama.
Estava encharcada de suor, os lençóis amassados como se tivesse lutado contra monstros invisíveis durante a noite. O relógio marcava três da manhã. Tudo estava escuro, silencioso demais.
Quando olhou para o espelho, quase gritou.
Seu reflexo estava diferente. O rosto era o mesmo, mas os olhos… tinham a mesma cor âmbar do homem do teatro. Por um segundo, era como se ele estivesse dentro dela, observando do outro lado.
Acendeu todas as luzes da casa. Precisava entender o que estava acontecendo. Correu até o armário e puxou a caixa com documentos antigos que pertenciam à sua avó. Lembrava-se vagamente de histórias contadas quando era criança, sobre uma atriz misteriosa na família, envolvida em um escândalo no passado.
No fundo da caixa, encontrou uma fotografia. Uma jovem em trajes de época, com um colar em forma de círculo com runas. Ao virar a foto, uma caligrafia antiga lia-se: Isadora Leclerc – 1937.
Debaixo da imagem, havia um diário em couro gasto, com as iniciais I.L. na capa. As mãos de Elisa tremiam ao abrir. As páginas falavam de ensaios, amores secretos, medo de alguém chamado Victor, e a obsessão dele com o poder do “Círculo das Almas”. Em uma das últimas entradas, lia-se:
"Ele acredita que pode aprisionar almas. Que, ao morrer, voltará com mais força. Eu tentei fugir, mas ele disse que se eu o traísse… me encontraria em qualquer vida."
Elisa caiu sentada no chão, com o diário sobre o colo. A cada palavra, o passado parecia se entrelaçar com o presente, como raízes se agarrando a um solo fértil de lembranças esquecidas.
Ela já não podia negar.
Estava presa em algo maior, antigo, e terrivelmente vivo.
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Atualizado até capítulo 41
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