O Selo das Vozes Antigas
Os primeiros raios da manhã filtravam-se pela janela, mas o sol parecia hesitante em tocar aquele lugar. Elisa permanecia sentada no chão, os olhos fixos no diário da mulher que agora sabia ter sido sua em outra vida. As palavras escritas com tinta envelhecida queimavam mais que fogo: “Se eu o trair, ele me encontrará em qualquer vida.” A ameaça cruzara as eras.
Um zumbido começou em sua cabeça, fraco como uma mosca distante, mas aumentando até se tornar um coro surdo de sussurros. Ela pressionou as mãos contra as têmporas, mas as vozes não cessavam. Elas se sobre punham, clamando por atenção, cada uma com um idioma esquecido, cada uma com um fragmento de dor. O quarto, antes silencioso, pulsava com presenças invisíveis.
Levantou-se cambaleante, trancando o diário numa gaveta. Precisava de ar. De respostas. De paz.
Vestiu-se rapidamente e saiu pelas ruas da cidade. Havia algo no ar: um frio incomum para aquela estação, como se o tempo estivesse fora do compasso. Pessoas pareciam andar mais rápido, seus rostos mais pálidos, como se compartilhassem o mesmo receio que agora se enraizava nela.
Seu destino era a biblioteca central, um prédio gótico de três andares com vitrais representando cenas mitológicas. Lá, entre corredores de madeira e cheiro de papel envelhecido, ela esperava encontrar algum vestígio do que a atormentava.
Na recepção, uma senhora de cabelos grisalhos olhou para Elisa como se a reconhecesse, mas não disse nada. Apenas indicou a seção de arquivos históricos com um leve aceno de cabeça.
Ao descer as escadas rangentes que levavam ao subsolo, uma sensação de déjà vu tomou conta de seu corpo. A penumbra era total, exceto pelas lâmpadas amareladas que piscavam de tempos em tempos. Ela percorreu corredores estreitos, com estantes tão altas que pareciam alcançar o teto do mundo.
Parou diante de uma seção chamada Cultos e Rituais Obscuros. Um arrepio percorreu sua espinha. Passou os dedos pelas lombadas dos livros até encontrar um encadernado em couro escuro, sem título. Ao abri-lo, um vento gelado varreu o ambiente, apagando momentaneamente as luzes.
As páginas estavam preenchidas com símbolos circulares, desenhos de entidades sem rosto e textos em latim antigo. No centro do livro, uma gravura chamava atenção: um círculo de almas entrelaçadas por correntes de luz e escuridão, com um homem no centro — o mesmo rosto que a perseguia nos sonhos e memórias: Victor.
A legenda abaixo dizia: “Aquele que controla o Selo das Almas jamais morre. Ele reencarna em cada ciclo, em busca da centelha que o completa.”
Elisa fechou o livro com força.
Era disso que se tratava tudo. Ela não era apenas uma vítima de coincidência. Era parte de algo milenar, uma peça essencial num jogo entre vida, morte e poder.
Enquanto se retirava da biblioteca, a senhora da recepção se aproximou com um olhar grave.
— Você mexeu onde não devia — disse ela, em tom baixo. — Ele sente quando alguém toca no selo.
— Quem é ele?
— Aquele que nunca aceitou a morte. Que amaldiçoou o ciclo com sua fome. Ele está mais perto do que imagina. E se você continuar... ele vai acordar por completo.
Elisa recuou, o coração acelerado.
— Preciso saber como encerrar isso. Como quebrar o círculo.
A mulher olhou ao redor, certificando-se de que estavam sozinhas, e tirou de sua bolsa um medalhão prateado. Era idêntico ao colar na foto de Isadora.
— Isso pertenceu a você. Guardamos por gerações, esperando o momento em que sua alma voltasse. O símbolo atrás protege, mas também revela.
Ela virou o medalhão. Gravado no metal, havia um círculo entrelaçado com três runas centrais. Ao tocar o objeto, Elisa sentiu como se estivesse sendo puxada para dentro de si mesma.
Num instante, imagens invadiram sua mente: um campo florido ao entardecer, uma cabana com livros espalhados, e uma figura encapuzada observando de uma colina distante. Depois, um grito — o seu — rompendo o silêncio da eternidade.
Elisa caiu de joelhos, ofegante.
— As memórias virão como marés — disse a senhora. — Se resistir, será consumida. Se aceitar, talvez haja esperança.
Com o medalhão pendendo de seu pescoço, Elisa caminhou de volta para casa. No caminho, as ruas pareciam diferentes. As vitrines estavam apagadas, os carros parados como se o tempo tivesse congelado. Pássaros sobre os fios elétricos não se moviam. Um silêncio surreal envolvia o bairro.
Ao dobrar a esquina de sua rua, parou subitamente.
Sua casa estava cercada por símbolos pintados com tinta preta. Os mesmos do livro. As janelas estavam cobertas com véus escuros, e uma figura parada diante da porta observava-a com olhos vazios.
Era o mesmo homem do palco. Mas agora... não havia melancolia nele. Apenas poder. Frio, antigo, irredutível.
— O Círculo está quase completo — disse ele. — Falta apenas você aceitar o que é.
— Eu nunca serei sua peça — respondeu ela, firme.
Ele riu, como se já soubesse o final da história.
— Então prepare-se para conhecer cada vida que enterrou. Porque esta é apenas a primeira chama.
Num piscar de olhos, ele desapareceu. As pinturas sumiram. O mundo retomou o movimento, como se o momento tivesse sido um lapso temporal.
Mas Elisa sabia. O jogo havia começado.
E ela precisava descobrir as regras antes que fosse tarde demais.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 41
Comments