Rostos na Névoa
O símbolo queimado no chão não desapareceu ao amanhecer. Elisa observava a marca com o coração apertado, sem coragem de tocá-la. Estava ali como uma cicatriz viva, gravada em madeira antiga por um fogo que não queimava. Parecia pulsar sob a superfície, como se estivesse viva.
Ela pegou o celular para fotografar, mas a imagem capturada mostrava apenas o piso limpo, como se o símbolo fosse invisível às lentes digitais. Tentou de novo, com outra câmera. Nada. Na imagem, o quarto parecia comum, banal. Mas seus olhos continuavam vendo as linhas escuras, as bordas vermelhas e a leve fumaça que escapava por entre os traços. Aquilo não era um sonho. Era um aviso.
Durante o café da manhã, mal conseguiu engolir o primeiro gole. O gosto estava amargo, e a náusea veio como uma onda. Jogou o líquido na pia e sentiu a vertigem se aproximar. O mundo ao seu redor parecia distorcido, como se o tempo tivesse começado a escorrer mais devagar.
Quando saiu de casa naquela manhã, o céu estava encoberto e um vento gelado cortava as ruas. Elisa caminhava sem destino certo, apenas querendo sair de perto daquele quarto. Cada passo parecia conduzi-la por caminhos que não escolheria, como se fosse guiada por mãos invisíveis. Passou por uma praça antiga, onde crianças brincavam sob os olhares cansados dos avós. Ali, ao lado de uma estátua de bronze coberta de musgo, algo chamou sua atenção.
Uma mulher idosa, sentada sozinha em um banco, a observava fixamente. O rosto era marcado por rugas profundas, mas os olhos — de um azul vívido — pareciam perfurar sua alma. Elisa tentou desviar o olhar, mas não conseguiu. Havia algo naquela mulher que a impedia de continuar andando.
— Elisa... — disse a senhora, antes mesmo que ela pudesse falar qualquer coisa.
Ela congelou.
— Como sabe meu nome?
A mulher sorriu levemente, sem responder de imediato. Seus dedos tremiam levemente, mas ela apontou para a estátua à sua frente.
— Nós nos encontramos aqui, muitos anos atrás. Eu ainda era jovem. E você também. Estávamos vivos em outras peles, com outros nomes.
Elisa deu um passo para trás.
— Isso é alguma piada?
A idosa negou com a cabeça.
— Você ainda não se lembra de mim. Mas eu me lembro de você. Da noite do incêndio. Da traição. Você me deixou lá para morrer... e ainda assim, estou aqui.
O frio aumentou. A brisa parecia cortar sua pele como lâminas finas.
— Eu não sei do que você está falando. Não lembro de nada disso.
A senhora olhou para o céu.
— Ainda não. Mas vai lembrar. Todos sempre lembram.
E então, com um suspiro longo, ela se levantou e caminhou para longe, mancando levemente, sem olhar para trás. Elisa sentiu as pernas tremerem. Não havia como aquela mulher saber seu nome. Não havia como ela descrever algo tão específico… a não ser que…
Naquela tarde, Elisa decidiu voltar à biblioteca da cidade, em busca de qualquer pista. Subiu para a seção histórica, onde quase ninguém ia, e mergulhou em jornais antigos, registros da cidade, obituários esquecidos. A poeira impregnava as páginas como um véu silencioso do tempo.
Foi então que encontrou algo perturbador.
Um artigo amarelado, datado de 1937, com o título: “Incêndio no Teatro Municipal deixa sete mortos”. A matéria descrevia um evento trágico durante uma peça, onde o cenário pegou fogo e muitos ficaram presos. Havia uma lista de nomes — e entre eles, o de uma mulher chamada Isadora Leclerc.
Elisa sentiu um nó na garganta. A foto anexada à matéria mostrava a jovem atriz principal da peça, vestida com um figurino antigo e uma expressão intensa. Os olhos… eram exatamente como os dela. Não parecidos — iguais.
Virou a página com as mãos trêmulas. A peça encenada naquela noite foi uma tragédia grega chamada "O Círculo das Almas". Um enredo sobre amores fadados ao fracasso e almas presas em ciclos de vingança.
Ao fechar o livro, notou que alguém a observava do final do corredor entre as prateleiras. Um homem, alto, com expressão grave, vestindo um casaco escuro. Seus olhos estavam semicerrados, como se analisassem cada detalhe dela. Elisa piscou, surpresa — e ele desapareceu, como se nunca estivesse ali.
Levantou-se e correu até o corredor, mas não havia ninguém. As luzes piscaram por um breve momento, e um leve cheiro de fumaça invadiu o ar.
A caminho de casa, a mente de Elisa fervilhava. Vidas passadas? Vinganças antigas? Era difícil aceitar, mas cada novo acontecimento empurrava sua lógica para um abismo desconhecido.
Ao chegar em casa, encontrou a porta entreaberta. O coração acelerou. Empurrou a madeira lentamente, pronta para gritar ou correr. Mas não havia ninguém. Tudo estava no lugar — exceto um detalhe: no espelho da sala, estava escrita uma frase com letras trêmulas, como se desenhassem com um dedo embaçado:
“Você o matou. E ele voltou.”
Elisa cambaleou para trás. A frase começou a desaparecer lentamente, como se evaporasse com o ar.
Naquela noite, não ousou dormir. Sentou-se no chão, de costas para a parede, com todas as luzes acesas. Passou horas olhando para a porta, esperando que algo ou alguém surgisse. Nada aconteceu.
Mas no limiar da madrugada, entre a vigília e o cansaço, ouviu novamente a voz do sonho. Mais nítida. Mais próxima.
“Você quebrou o ciclo. Agora ele quer que você o complete.”
Elisa fechou os olhos. E quando os abriu de novo, estava em outro lugar.
Estava no teatro de 1937.
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Atualizado até capítulo 41
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