A alvorada chegou silenciosa, como se o próprio sol hesitasse em nascer naquele dia. As nuvens cerradas pairavam sobre o Reino de Arkanne, tingindo os céus de um cinza sombrio. Os sinos, desta vez, não anunciaram luto — mas tampouco soaram em júbilo. Era uma manhã de expectativa. De medo. De olhares cruzados em silêncio.
O Reino se preparava para ser comandado por uma rainha. Pela primeira vez.
Nas aldeias, o povo reunia-se em frente às casas, cochichando entre si, murmurando incertezas. Muitos jamais haviam visto Lancelot de perto. Conheciam-na apenas como a esposa do rei Otávio, a bela e silenciosa dama que raramente aparecia em público. Outros diziam que ela era ambiciosa, fria. E havia quem sussurrasse histórias mais perigosas — de veneno, traição e sangue derramado nas sombras do castelo.
No alto do Palácio Real, os criados corriam em silêncio. Tecidos eram estendidos sobre os corredores, o trono polido com pressa, flores dispostas em cada arco de pedra. Tudo precisava estar impecável. Era o nascimento de um novo reinado.
Na câmara real, Lancelot estava em pé, diante de um espelho antigo. Vestia uma túnica branca bordada com fios dourados, uma obra-prima feita às pressas para a ocasião. Sobre o colo, um colar com o brasão de Arkanne: o lobo e a estrela. O véu escuro que usara no funeral fora deixado de lado. Agora, seu rosto estava exposto ao mundo. Bela, imponente, e... enigmática.
— Está pronta, majestade? — perguntou uma voz baixa atrás dela.
Era lady Myrielle, sua antiga aia e confidente. Uma mulher de meia-idade, cabelos grisalhos presos com grampos de prata. Era uma das poucas pessoas no castelo em quem Lancelot confiava de verdade.
— Nunca se está pronta para carregar o mundo nos ombros, Myrielle — respondeu Lancelot, sem tirar os olhos do espelho. — Mas não tenho escolha, tenho?
— Tem, sim, senhora. Pode recusar. Pode fugir. Mas não é isso que fazem as rainhas.
Lancelot esboçou um sorriso frio.
— Exato.
Do lado de fora, tambores começaram a soar em ritmo cerimonial. A multidão reunia-se na praça central, em frente à escadaria do Templo dos Deuses, onde a coroação aconteceria. Uma estrutura ancestral, construída em pedra branca e cercada por colunas com rostos entalhados dos antigos monarcas. Era ali, sob os olhos dos mortos, que os vivos juravam fidelidade à nova coroa.
Lancelot desceu os degraus do castelo em meio a escolta real. Os olhos dos presentes estavam sobre ela — mas não havia aclamação. Apenas silêncio. Um silêncio espesso, como névoa antes da tempestade.
No templo, já a esperavam os principais nomes do reino.
O Duque de Thorne, trajando preto e prata, estava ao lado do Cardeal Grandel. Suas mãos estavam unidas nas costas, e seu sorriso... falso. Tão perfeitamente esculpido que quase parecia verdadeiro. Ele fez uma leve mesura quando ela se aproximou.
— Minha rainha — disse, com a voz aveludada e venenosa. — Que dia glorioso.
— Glorioso, sim — respondeu ela, sem hesitar —, para quem sobreviveu até aqui.
Thorne riu baixinho, fingindo divertimento. Mas os olhos dele falavam outra língua.
À esquerda do altar, um novo rosto observava com discrição. Era Sir Aldren Darvane, cavaleiro da fronteira oeste, comandante das tropas que garantiram as vitórias mais estratégicas do reino durante a guerra contra o norte. Um homem jovem, de fala contida e olhos atentos. Já havia se inclinado levemente em apoio a Lancelot dias antes, e agora, assistia com expressão austera, como quem espera o momento certo de agir.
Ao lado dele, Lady Elowen Ravaryne, herdeira da Casa Ravaryne, do sul do reino. Seu vestido rubro contrastava com a frieza ao redor, e seus olhos esmeralda estavam sempre ligeiramente semicerrados. Era uma estrategista nata, conhecida por suas manobras políticas. Diziam que ela e Lancelot trocavam cartas havia anos.
O Cardeal ergueu o báculo e o som dos tambores cessou.
— Hoje, diante dos deuses e dos homens, coroamos Lancelot de Arkanne como nossa soberana. Que sua mente seja afiada como a espada e seu coração, forte como o trono.
Lancelot ajoelhou-se diante do altar. O Cardeal tomou a coroa real — feita de ouro branco, cravejada com pedras das quatro regiões de Arkanne — e a ergueu no alto.
— Aceita o peso da coroa, com seus deveres, sacrifícios e condenações?
— Aceito — disse ela, com voz firme.
— Juras proteger este reino com sua vida?
— Juro.
— Juras jamais deixar-se corromper pelos próprios desejos?
Lancelot hesitou.
Uma batida de silêncio.
— Juro — respondeu, por fim. Mas seus olhos, impassíveis, não acompanhavam o voto.
A coroa foi depositada sobre sua cabeça.
E naquele instante, os ventos pareceram mudar. As nuvens se moveram. Um corvo soltou um grito agudo do alto da torre do templo.
A multidão não aclamou.
Não houve vivas.
Apenas o som das tochas queimando e o farfalhar das bandeiras.
Lancelot se ergueu.
— Que todos saibam — declarou o Cardeal —, que a rainha está coroada.
Ela encarou o povo. Seus súditos. Suas peças.
Cada um deles, uma ameaça. Ou uma arma.
Thorne sorriu. Elowen a observava com interesse calculado. Sir Aldren curvou-se respeitosamente. E do meio do povo, surgiram os primeiros rumores. Uns diziam que o reino entraria em guerra. Outros que Lancelot traria a paz. Outros, ainda, acreditavam que tudo terminaria em sangue.
Mas uma coisa era certa.
A rainha estava coroada.
E ninguém, naquele reino, dormiria tranquilo novamente.
Lancelot permaneceu imóvel por alguns segundos após a coroação, permitindo que o silêncio se estendesse por todo o templo. Era o tipo de silêncio que punha homens poderosos à prova. O tipo de silêncio que separava os leais dos oportunistas.
Então, ela deu um passo à frente.
— Meu povo — disse, a voz projetada com clareza, mas sem gritos, como se cada sílaba já nascesse com autoridade —, hoje nasce uma nova era.
Todos a escutavam com atenção. Não por respeito. Por receio.
— Muitos se perguntam se uma mulher é capaz de comandar um trono onde reis antigos pereceram. Muitos se escondem atrás da tradição, do medo ou da covardia. Alguns até... — seus olhos passearam sutilmente por Thorne — ...sussurram dúvidas entre paredes frias, achando que o silêncio os protegerá.
Uma pausa. Seu olhar agora estava fixo na multidão.
— Permitam-me esclarecer algo — continuou. — Minha coroa não é enfeite. Minha autoridade não é adereço. E meu gênero... não é fraqueza. Eu não serei tolerante com insubordinação, zombarias ou resistência. Quem se colocar contra mim, cairá. E cairá em silêncio, assim como caiu aquele que um dia pensou reinar sobre mim.
Murmúrios nervosos cortaram o ar. O Cardeal engoliu em seco. O nome de Otávio não foi dito, mas sua sombra pairava sobre cada palavra.
Lancelot ergueu os braços lentamente.
— Ajoelhem-se. Todos. Em honra à nova soberana de Arkanne.
Houve hesitação.
O povo na praça começou a se curvar um a um, lentamente. Alguns nobres do templo olharam uns para os outros, avaliando o movimento. Os mais prudentes se ajoelharam imediatamente.
Thorne, no entanto, permaneceu em pé por um momento a mais.
Lancelot virou-se na direção dele, o olhar como uma lâmina embainhada. Seus olhos encontraram os dele, e por um instante, o templo inteiro parou.
Thorne tentou manter o sorriso, mas seus olhos vacilaram. Havia um peso naquela troca de olhares. Algo mais profundo do que uma simples formalidade. Ele respirou fundo, fez uma leve reverência — e ajoelhou-se.
Lancelot não sorriu. Mas os músculos de sua face relaxaram ligeiramente. Vitória silenciosa.
Ao lado dele, Sir Aldren Darvane desceu sobre um joelho com firmeza.
— Arkanne prosperará sob sua liderança, majestade — declarou, alto o bastante para que todos ouvissem. — E minhas espadas estarão à disposição do seu comando.
A rainha assentiu, mantendo a compostura, mas por dentro reconhecia o valor daquela aliança. Sir Aldren tinha o respeito dos exércitos e era amado pelo povo. Mantê-lo por perto seria... útil.
Em seguida, Lorde Merik Vandrel, vindo do reino montanhoso de Eldar, ajoelhou-se. Um homem robusto, barba espessa e voz de trovão.
— A Casa Vandrel apoia a coroa. Que a Senhora de Arkanne seja firme como as pedras de nossas montanhas.
Lady Mirella Lys, da Ilha Rubra, curvou-se com elegância:
— Que os ventos tragam prosperidade ao seu reinado, Vossa Majestade. E que suas decisões soprem a incerteza para longe.
Mais nomes seguiram. Mais joelhos tocaram o mármore.
A cada aclamação, o domínio de Lancelot ganhava raízes. O que antes era hesitação se transformava em obediência. Por medo. Por respeito. Ou por estratégia.
A rainha, agora no centro absoluto da atenção, elevou uma última vez a voz.
— Levantem-se — ordenou. — E nunca mais se esqueçam de quem sou.
Todos obedeceram.
Ela não precisou gritar. Não precisou empunhar uma espada. Sua presença bastava. Uma rainha havia sido coroada — e Arkanne, naquele momento, compreendeu o que significava estar sob o comando de uma mulher que jamais se curvaria.
A tempestade havia começado.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 28
Comments