O sino da morte ecoava como trovões surdos pelo vale. Três badaladas lentas a cada intervalo, e com cada uma, o reino mergulhava mais fundo no luto. As bandeiras pendiam a meio mastro, os portões do castelo estavam cobertos por panos negros e os jardins — outrora perfumados e vibrantes — agora pareciam um espelho pálido do pesar.
No grande salão de pedra do palácio, o corpo do rei Otávio jazia dentro de um caixão de ébano, cercado por colunas encobertas por longos véus de luto. O cheiro de velas e incenso era tão intenso que fazia os olhos arderem. Guardas armados em suas armaduras polidas ladeavam o caixão, imóveis como estátuas com suas armas prontas para ser desembainhadas se alguém se aproximasse sem permissão. O ambiente inteiro estava mergulhado em uma solenidade sombria.
Lancelot vestia-se de luto profundo — um vestido longo de veludo negro com detalhes prateados e um véu espesso ocultando todo o seu rosto. As mãos juntas a frente do corpo, ela mantinha-se com expressão neutra. Caminhava com passos calculados, mas não apressados. Os olhares dos nobres cravavam-se nela como punhais ocultos sob vestes de seda enquanto caminhava em direção ao caixão de seu marido.
Ela se aproximou do caixão, a cabeça erguida com altivez. Parou ao lado e olhou para o rosto inerte de Otávio. A morte o tornara silencioso, como ela sempre desejara — mas o gosto da vitória era amargo, pois custara mais do que planejara. Não era para tê-lo matado. Apesar de tudo o que Otávio há lhe fizera, Lancelot não queria carregar sua morte nas mãos. Ela pode ter culpado o pobre jardineiro, mas sabia que, na verdade, a verdadeira culpa estava em suas mãos.
Engoliu o nó na garganta e pousou a mão enluvada sobre a madeira escura. A voz saiu baixa, mas firme.
— Que a morte te leve em paz, Otávio. Talvez seja a primeira vez que repousas sem ódio no coração.
Atrás dela, os cortesãos fingiam pesar, mas na verdade, Otávio não foi um bom rei. A maioria chorava por protocolo. Mas entre os rostos pálidos e frios, um em especial mantinha-se imóvel — e atento.
O Duque de Thorne.
Vestia o traje cerimonial escuro da Casa Real, uma farda rica em bordados prateados. Os olhos cinzentos do irmão do rei estavam cravados em Lancelot, como se quisessem arrancar dela uma confissão. Ele não piscava. Não desviava. Não chorava. Era como se dissesse a ela com o olhar, que sabia de tudo.
Quando ela se virou para encarar os presentes, viu-o ali, ao fundo, parado entre duas colunas de pedra. O véu ocultava seu rosto, mas ela soube: ele a observava com atenção cirúrgica. Um calafrio percorreu sua espinha. A mente de Lancelot, ágil como a de uma loba em cerco, latejou em alerta.
"Ele sabe."
A hipótese formou-se como um sussurro cortante. "Ele viu?" Não... não podia. Não havia ninguém ali. Apenas ela... o rei... e o serviçal.
Mas o olhar dele não deixava dúvidas: ele desconfiava. E isso bastava para ser perigoso.
O Cardeal Grandel, velho e curvado, aproximou-se do altar e ergueu os braços para que todos se sentassem. Lancelot se sentou em seu trono, ao lado do caixão, enquanto todos se sentavam de frente para ela, na enorme construção de pedras. Iria iniciar a cerimônia de passagem:
— Que os deuses acolham o rei Otávio em seus salões eternos. Que sua alma encontre descanso. E que sua morte, embora trágica, não quebre a estabilidade do trono.
— Amém!— Todos responderam em uníssono.
— Rei Otávio, adorado, venerado, será recebido pelos deuses com honrarias...
A cerimônia continuou. Lancelot manteve a postura, mas por dentro, sentia cada palavra como uma lâmina. “Trágica”. “Estabilidade”. “Trono”. Tudo carregado de significados ocultos. Ela sabia o que o religioso quis dizer com estabilidade. Na verdade, ninguém acreditava no reinado de Lancelot, todos pensavam que ela acabaria com o reino, que seria uma péssima rainha.
Após a cerimônia, o corpo foi conduzido em procissão silenciosa pelos jardins até o túmulo real. O cortejo era solene: soldados marchavam ritmadamente, sacerdotes murmuravam preces fúnebres, e atrás deles, os nobres se enfileiravam conforme o protocolo exigia.
Lancelot era levada em uma carruagem de cor preta, logo atrás de seu marido. Em sua frente, sentado, estava o nobre Thorne, que insistia em a encarar. Não ousava olhar para ele. Mas sabia que Thorne estava lá. Sentia-o. O calor de seus olhos como brasas queimando a pele pálida de seu rosto.
No mausoléu, cavado nas profundezas da cripta real, o corpo de Otávio foi finalmente depositado. O caixão foi coberto com o brasão da Casa de Arkanne, e o símbolo do cetro foi colocado sobre ele. Quando a última pedra foi selada, Lancelot sentiu o peso final cair sobre seus ombros.
Ela ficou em pé diante da sepultura lacrada, os olhos fixos no nome entalhado na pedra:
Otávio, o Rei Dourado.
As palavras pareciam zombar dela.
— Majestade... — murmurou uma voz grave ao seu lado.
Ela se virou lentamente. Era Thorne. Agora mais perto do que nunca. O rosto estava neutro, mas os olhos — aqueles olhos — eram abismos cheios de julgamento. Ele carregava um sorriso curto, quase imperceptível, mas cheio de significados. Ele fez uma leve reverência.
— Espero que esteja suportando bem o fardo — disse ele.
Lancelot assentiu, tensa. Thorne tocou sua mão e a levou até a boca, beijando-a. Lancelot sentiu o peito acelerar, sentiu medo daquele homem, o mesmo medo que sentia de seu irmão.
— Farei o que for necessário. Pelo reino.
Thorne inclinou a cabeça levemente, com aquele sorriso que não era bem um sorriso.
— Sempre admirável sua determinação... minha rainha.
Ela sentiu um arrepio. Ele não disse “vossa majestade”, como os demais. Disse “minha rainha”, como quem lembrava a ela que agora o poder era seu — e que ele era uma ameaça sutil demais para ser descartado.
— O povo quer saber quando tomará o trono oficialmente — completou ele.— Todos já comentam que não podem ficar sem um governo por muito tempo.
Lancelot respirou fundo. Sabia que Thorne sempre quis ser rei, mas seu pai retirou seu título de príncipe e passou a herança do trono a Otávio, pois Thorne era uma pessoa muito inconsequente quando novo e acabaria destruindo o legado de seu pai, o falecido rei Heros.
— Amanhã ao amanhecer.
— Perfeito. Estarei lá. Na primeira fileira.— disse ele, antes de se afastar, deixando no ar um rastro de silêncio mais ameaçador que qualquer grito.
Quando ele se foi, Lancelot ficou sozinha diante da tumba. O mundo parecia ter parado de respirar.
"Ele sabe. Ou acha que sabe. E vai esperar o primeiro deslize para provar."
Ela se recompôs. Alisou o vestido, ergueu o queixo e deixou o mausoléu com passos firmes.
O rei estava morto.
Mas os inimigos ainda viviam.
E o jogo de poder — aquele que definiria o futuro do trono — havia apenas começado.
Lancelot deu uma última olhada para o caixão. Agora ela estava livre de Otávio, mas sabia que isso traria muitos inimigos. Um deles seria o Thorne, mas Lancelot estava disposta a enfrentar quem quer que quisesse a tirar do trono. Ela queria ser uma rainha de ferro, temida por todos, respeitada. Lancelot decidiu que ser uma boa rainha não seria uma opção, pois a faria frágil.
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Atualizado até capítulo 28
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