0004

0004- educação "apropriada"..

Depois de dias naquele quarto frio e escuro, minha mãe voltou.

Ela trouxe comida — pão seco e sopa morna. Eu comi em silêncio, sentindo o estômago doer ao receber de volta algo que já não esperava.

E então ela me entregou um livro. Grosso. Pesado. As páginas amareladas e cheias de palavras que eu mal reconhecia.

—Você tem três dias pra ler tudo isso, Anna. —ela disse, com aquele tom neutro que soava mais como ordem do que cuidado. —Depois vou fazer perguntas. Se errar… —ela não completou.

Ela não precisava.

Eu só tenho cinco anos.

Cinco.

E mal sei juntar letras.

Como vou ler isso tudo em três malditos dias?

Foi o que pensei. Gritei por dentro.

Mas por fora...

Fiquei quieta.

Engoli as palavras como engoli a sopa: com medo.

Medo de ser arrastada de novo para aquele quarto escuro, onde o frio não só queimava a pele, mas fazia eco dentro da alma.

Medo de ser deixada do lado de fora da casa, onde o inverno castigava tudo que respirava.

Ela me olhou como se esperasse que eu fosse capaz.

Como se eu já tivesse nascido pronta pra carregar o mundo.

Mas eu só sou uma criança.

Só uma menina que queria colo, não comandos.

Queria uma história antes de dormir, não um livro cheio de perguntas e punições.

Mas não disse nada.

Apenas abracei o livro como quem abraça uma arma.

Porque agora, aprender a sobreviver...

Era a única forma de não desaparecer.

    .....

As palavras continuavam embaralhadas. Minhas mãos pequenas tentavam acompanhar as linhas com os dedos, como se isso pudesse fazer as letras criarem sentido. Mas nada vinha.

Eu já estava quase desistindo, quase abrindo a boca pra chorar baixinho, quando a porta da cozinha rangeu.

Passos leves. Cuidadosos.

Levantei o olhar com medo, o coração travado na garganta.

Uma mulher surgiu no corredor.

Ela usava um vestido simples, antigo, um avental sujo de farinha e sopa seca. O cabelo preso de qualquer jeito, os olhos fundos. Mas quando me viu... algo brilhou neles.

Compaixão.

Ela olhou pros lados, como quem esconde um segredo, e se ajoelhou na minha frente.

—Você devia estar no quarto, menina... vão brigar comigo se te virem aqui.

Engoli em seco, apertando o livro contra o peito.

—Me mandaram ler... eu não sei... não sei ler... —a voz saiu tão fraca que parecia nem ser minha.

Ela suspirou. Ajeitou o avental, olhou para o alto, talvez rezando por coragem.

—Esses monstros... —murmurou, e estendeu a mão.

—Me dá esse livro. Vamos começar agora. Se alguém perguntar, eu só tava limpando esse canto... e você tava me fazendo companhia, entendeu?

Entreguei o livro devagar. Meus olhos ardiam. Era a primeira vez que alguém olhava pra mim sem esperar nada. Sem cobrar. Sem testar.

—Qual é seu nome? —ela perguntou, folheando o livro com calma.

—Anna.

Ela assentiu, com um pequeno sorriso triste.

—Anna... se você quiser sobreviver aqui, vai ter que aprender a fingir. Mas comigo, você não precisa fingir nada.

—Meu nome é Helena. E eu vou te ajudar. Mesmo que isso me custe tudo.

   Helena me ajudou bastante durante aqueles dias.

Ela lia comigo, devagar, apontando cada palavra com o dedo como se desenhasse um caminho no escuro.

Tinha paciência — uma coisa que eu mal sabia que existia.

Ela sorria. E às vezes até ria, como se o mundo lá fora não estivesse afundando.

Mas isso me assustava.

Porque eu aprendi cedo que o perigo nunca grita. Ele sussurra.

A crueldade não chega de mãos dadas com o medo… mas com promessas doces.

E Helena era doce.

Demais.

—Você tá com medo de mim, não tá? —ela perguntou certa noite, depois de me corrigir numa palavra complicada.

—Você mal me olha nos olhos, Anna.

Eu fiquei em silêncio. As mãos apertadas entre os joelhos. O livro aberto no colo.

E a confissão veio, fria, dura, sincera:

—Às vezes... a maldade se esconde por trás de pessoas bonitas. Boas. Com sorrisos calmos.

—E quando elas machucam... dói mais. Porque a gente acreditou.

Helena não respondeu de imediato.

Mas sua expressão mudou. Algo se partiu dentro dela. Talvez porque ela também soubesse. Talvez porque um dia, ela também acreditou em alguém assim.

Ela se aproximou devagar, não como mãe, não como amiga, mas como alguém quebrada igual a mim.

—Então, não acredita em mim, Anna. —ela disse, ajoelhada ao meu lado. —Acredita em você. No que você sente. No que você aprende. E se um dia eu te machucar… você pode me odiar. Me bater. Me deixar.

Ela pegou minha mão gelada com tanta leveza que nem pareceu toque.

—Mas até lá… eu só quero te ensinar a sobreviver. Como ninguém ensinou pra mim.

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