Capítulo 4

A maçaneta girou devagar.

Oriana entrou em casa já sabendo que o ar estaria diferente. Que a atmosfera ainda carregaria o eco do que não se resolvera — e talvez do que não tivesse mais como ser consertado.

Ela ouviu o som da televisão vindo da sala e o riso de Asher misturado com alguma musiquinha de desenho animado.

— Mamãe! — ele gritou assim que a viu entrar.

Oriana forçou um sorriso e se abaixou para abraçá-lo.

— Oi, meu amor. Como foi o dia?

— A gente foi no parque! E papai me deixou subir na pedra gigante! — ele contou com os olhos brilhando de empolgação.

Atrás dele, Noam se levantou do sofá. Usava uma camiseta preta simples e os cabelos estavam um pouco bagunçados, como se ele tivesse passado as mãos por eles muitas vezes ao longo do dia — o que provavelmente era verdade.

— Oi — ele disse.

— Oi — ela respondeu, sem sustentar o olhar.

A tensão entre os dois era quase palpável. Mas Asher não a via. Ou, se via, fingia que não.

— Mamãe, olha a folha do coração! Igual ao meu desenho!

Ele mostrou a folha ressecada que havia guardado no bolso da jaqueta. Oriana segurou-a com cuidado, sentindo uma pontada no peito.

— É linda, filho.

Noam observava de longe, com as mãos nos bolsos. O silêncio entre eles era repleto de significados, como uma conversa muda cheia de perguntas sem coragem para nascer.

— Eu fiz lasanha pra janta — disse ele, num esforço tímido para oferecer algo.

— Obrigada. Eu como depois — respondeu, pegando a mochila de Asher e colocando no cabide do hall de entrada.

— Mamãe, posso dormir na sua cama hoje? — o menino pediu, abraçando a perna dela.

Ela hesitou. Olhou para Noam por reflexo, como se ainda buscasse nele algum tipo de aprovação — e detestou o impulso.

— Pode, sim.

— Mas a gente vai assistir desenho junto antes, né? Os três?

Ela quase disse que não. Quase disse que estava cansada, com dor de cabeça, qualquer desculpa que o poupasse da convivência forçada.

Mas olhou para os olhinhos esperançosos do filho. E lembrou do desenho. Das mãos dadas. Do coração no meio.

— Claro que sim — respondeu com voz suave. — Só deixa a mamãe tomar um banho primeiro.

Asher correu para preparar os cobertores no sofá. Noam não se mexeu.

Ela passou por ele a caminho das escadas. Sentiu o perfume familiar. O cheiro da casa. Dele.

Por um momento, parou. Baixou o olhar. E disse, com um tom baixo, sem acusação — mas também sem trégua:

— Eu ainda não sei se consigo acreditar em você.

Noam respirou fundo. Sua voz saiu baixa, arranhada pela honestidade:

— Mas eu ainda estou aqui. E não vou desistir de nós.

Oriana fechou os olhos por um segundo. Depois subiu, sem dizer mais nada.

Na sala, Asher os esperava com a televisão ligada, o desenho favorito pronto para começar.

E o sofá, largo demais para dois adultos que não sabiam mais como se encaixar. Mas apertado o suficiente para caber o sentimento que ainda existia, mesmo escondido debaixo da mágoa.

O sofá estava coberto por um cobertor felpudo, os travesseiros posicionados como uma trincheira carinhosa para proteger o momento em família que Asher insistia em construir, mesmo sem perceber o quão frágil ele era agora.

O desenho favorito passava na tela, mas o menino mal prestava atenção. Ele estava mais interessado em observar os pais. Sentado entre eles, com uma pipoca infantil nas mãos e os pés descalços subindo e descendo, Asher parecia incansável em sua missão de fazê-los sorrirem ao mesmo tempo.

— Mamãe, papai, vocês estão tristes? — perguntou de repente, com a naturalidade brutal que só as crianças conseguem ter.

Oriana se ajeitou no sofá, desconcertada. Noam olhou discretamente para ela, como se esperasse um sinal para responder ou recuar.

— Claro que não, meu amor — ela disse, com uma doçura treinada. — Estamos só... cansados.

Asher franziu o nariz, desconfiado.

— Mas eu quero que vocês fiquem felizes. Igual no desenho!

Ele pulou do sofá e correu até a estante, onde havia deixado o desenho mais cedo. Voltou com ele nas mãos, desdobrando com cuidado, como se carregasse um tesouro.

— Tá vendo? Aqui, ó! Vocês tão dando a mão. Tão sorrindo. E o coração tá bem grandão no meio!

O desenho agora descansava no colo de Noam, que o encarava como se fosse uma carta escrita com todas as palavras que ele nunca soube dizer a Oriana.

— E sabe o que ia deixar o desenho mais legal ainda? — Asher continuou, os olhos faiscando de empolgação.

— O que, amor? — Oriana perguntou, apertando os dedos no joelho para conter a ansiedade.

— Se vocês dessem um selinho agora! Igual nos filmes que o papai assiste escondido e fala que não gosta! — disse rindo. — E depois a gente podia ter um irmão! Assim o desenho ia ter mais gente ainda!

O silêncio caiu como uma pedra no centro da sala.

Oriana congelou. Noam engoliu em seco. Os dois se entreolharam pela primeira vez desde que haviam se sentado. E ali, naquele breve olhar trocado por força do constrangimento, havia tudo que ainda doía.

O que antes era só um silêncio tenso agora ganhava contornos de tragédia contida — porque aquele pedido não vinha de mágoa ou ciúme, mas de puro amor.

Amor que doía.

Amor que apertava a garganta.

— A gente pode dar só um selinho? Vai, por favor? — Asher insistiu, rindo, batendo palminhas.

Oriana olhou para Noam. Os olhos dele pediam permissão. Não por desejo, mas pelo filho.

Ela hesitou por segundos que pareceram eternos. E, por Asher, por aquele coração desenhado com giz de cera, ela cedeu.

Um toque leve. Breve. Um selinho quase cênico.

Asher vibrou como se tivesse ganhado o melhor presente do mundo.

— Eba! Agora o coração ficou ainda mais vermelho!

Oriana virou o rosto, respirando fundo para não deixar a emoção subir. Noam apenas fechou os olhos por um instante, sentindo o gosto amargo de uma vitória sem glória.

Depois do desenho, o menino finalmente dormiu no colo da mãe, tranquilo, feliz, com a paz que só as crianças possuem — inconscientes de tudo que está prestes a se perder.

Noam ajudou a levá-lo para o quarto, em silêncio. Quando voltaram para a sala, Oriana foi a primeira a falar:

— Você viu o que ele fez?

— Ele só quer a gente junto — disse Noam, com a voz baixa, quase rendida.

— E o que vamos fazer com isso?

Ele não respondeu de imediato. Apenas a encarou, com uma honestidade crua, quase triste.

— Eu não sei, Oriana. Mas eu quero descobrir. Mesmo que a gente tenha que reaprender tudo do zero.

Ela fechou os olhos por um segundo.

— Boa noite, Noam.

E subiu as escadas.

Ele ficou parado por um tempo, sozinho, segurando o desenho mais uma vez. A folha já estava amassada.Mas o coração ainda estava inteiro.

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